6 de março de 2025

Motorista, iate, bolsas de R$ 17 mil e ‘looks’ de marca: alunos de faculdades caras viralizam com rotinas de luxo


Ao g1, estudantes-influenciadores garantem que meta é inspirar seus seguidores, e não ostentar. Psicólogos analisam impacto para a saúde mental (de quem posta e de quem assiste aos vídeos ‘chiques’). Alunos de faculdades caras mostram rotina com motorista, iate e bolsas de R$ 17 mil
No banco traseiro do carro com uma bolsa Louis Vitton avaliada em R$ 17 mil, Enrico Rico (nome artístico), de 22 anos, pede para o seu motorista buscá-lo na faculdade e levá-lo para passar o fim de semana no iate da família. Na segunda-feira seguinte, o jovem voltará a Campinas, no interior de São Paulo, para continuar cursando medicina na São Leopoldo Mandic, instituição particular com mensalidades de aproximadamente R$ 15 mil.
Na volta às aulas, Enrico comprou um bombom para cada colega da turma e grampeou um bilhetinho manuscrito: “Com carinho, Enrico Rico”. “Coloquei tudo na mala, porque meu motorista já estava me esperando”, conta no TikTok, em um vídeo com mais de 1 milhão de visualizações.
💰Ele não é o único a fazer sucesso com os bastidores da vida de estudantes com rotinas de luxo: como você verá nesta reportagem, há outros universitários que “bombam” nas redes sociais ao mostrar a vida de quem:
não pega transporte público para ir ao estágio (melhor usar o conversível da garagem);
não usa chinelo nem calça de moletom nas aulas (preferem salto alto e fazem até #publis de lojas de marca por meio dos vídeos de “arrume-se comigo”);
não passa calor em uma sala sem ar-condicionado (a faculdade dá de presente uma garrafa térmica de R$ 300) .
“Não sei muito bem [por que as pessoas se interessam pelos meus posts]. É que sou muito verdadeiro e passo para elas o que vivo. Tanta gente olha para mim e se inspira, sabe? Ensino que dá para fazer o dia a dia ficar mais leve”, diz Enrico Rico, em entrevista ao g1.
📳Andrea Jotta, pesquisadora de ciberpsicologia e professora da PUC-SP, explica que o fenômeno da exposição da própria rotina cresceu após a pandemia.
“No isolamento social, as pessoas passaram a fazer lives e a abrir a câmera dentro de casa. O limite entre o público e o privado foi se desfazendo. Já vivíamos na sociedade do espetáculo, mas a audiência cresceu. Virou comum mostrar tudo da sua vida — tanto entre os mais pobres quanto entre os mais ricos”, diz.
Abaixo, ao fim da reportagem, veja quais os custos emocionais dessa exposição (para quem posta e para quem assiste aos vídeos).
Enrico Rico, como gosta de ser chamado nas redes, estuda medicina na Mandic, no interior de SP
Arquivo pessoal
👛‘Aff, todo mundo tem essa bolsa’
“E eu, super achando que ia ser exclusiva com a minha bolsa Longchamp [marca francesa de luxo]? Afff, véi, todo mundo tem”, postou Liria Máximo, assim que viu suas colegas na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo. Os modelos custam de R$ 1.200 a R$ 2.200.
“Tem gente de fora que diz que é desnecessário, que aqui não é um desfile de moda. Mas as meninas normalmente vêm muito arrumadas. Eu amo montar meu look, e isso vira um incentivo para ir à faculdade”, afirma ao g1.
Na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), outra instituição de ensino na capital paulista, as altas produções também dominam as salas de aula. No TikTok, há vários vídeos de “arrume-se comigo” (“get ready with me”, em inglês), em que alunas mostram quais sapatos e roupas (em geral, de marca) usarão naquele dia.
Valentina Oliveira, por exemplo, explica aos seguidores como arruma o cabelo com seu secador Dyson (que custa mais de R$ 2.600), antes de entrar no carro conversível de seu pai no 1º dia de aula de 2025.
E Júlia Cardoso, aluna do 7º semestre de publicidade e propaganda, já fez até parceria com marcas de calçados e de bolsas, como a Arezzo, para montar seus “lookinhos” de faculdade.
“Os alunos costumam ir arrumados, e eu ainda tenho muitos eventos depois da aula. Então, vou de brilho, de salto alto, com vestidos bem ‘over’, para já conciliar com os meus compromissos”, conta.
“E mesmo que eu não tenha nada, me faz muito bem estar bem-vestida — não só para a Júlia pessoa, mas também para a Júlia influenciadora. Faz parte da minha persona e do meu trabalho na internet.”
Pessoalmente, Júlia só recebe elogios. Mas, nas redes, ela é frequentemente criticada, afirma. “Falam que eu sou louca e que é desrespeitoso ir tão arrumada assim. Dizem que não vou para estudar. Mas eu discordo: sou criadora de conteúdo de moda e fico feliz de usar as muitas roupas que tenho. Isso não tem nada a ver com não tirar boas notas ou não prestar atenção na aula”, explica a aluna.
Júlia Cardoso gosta de se arrumar para ir à FAAP, em São Paulo
Arquivo pessoal
🤑Brindes: iPad e garrafa térmica de R$ 300
“Unboxing do kit que a gente ganhou no primeiro dia da faculdade!”, anuncia Liv Nakashima, aluna da Link School of Business, escola de negócios em São Paulo que cobra mensalidades acima de R$ 14 mil.
Ela, então, abre uma caixa e revela que ganhou, além de moletom personalizado e vouchers de almoço, uma garrafa térmica que custa cerca de R$ 300. “A faculdade de vocês dá uma dessa de presente? Tenho certeza de que não”, diz a jovem, em um de seus vídeos do TikTok.
Na Mandic, o “brinde” foi mais tecnológico: os novos alunos de odontologia receberam iPads da 10ª geração, que custam por volta de R$ 3.500. Os estudantes podem levar o tablet para a casa e usá-lo à vontade ao longo dos 4 anos de graduação.
Seguidores traçam comparações: “Nossa, minha faculdade só me dá dor de cabeça mesmo”, escreve um deles.” E eu aqui, lutando para ter um copinho descartável ou um filtro de água”, comenta outro.
💳Os posts podem prejudicar alguém?
Enrico Rico faz medicina na Mandic, onde as mensalidades passam de R$ 14,5 mil
Arquivo pessoal
O g1 conversou com dois psicólogos especializados em saúde mental na internet para entender quais podem ser as consequências desses posts de “luxo”.
💍Não é preciso dizer que a realidade de iates e bolsas Chanel corresponde a uma ínfima parcela dos estudantes no Brasil. Mas há problema em assistir a vídeos que mostrem um luxo tão distante? E do ponto de vista dos criadores de conteúdo: faz mal mostrar tanto da intimidade?
Veja os destaques:
O perigo do discurso meritocrático
“Mostro que o dia a dia pode ser mais leve. Dá para fazer exercício, estudar, curtir. Existem padrões diferentes [de vida], mas nada impede alguém de correr atrás dos seus sonhos. É uma questão de organização e logística”, diz Enrico Rico.
Segundo Alessandro Marimpietri, psicólogo com doutorado em ciências da educação, é preciso que os criadores de conteúdo evitem vender a ideia de que o sucesso financeiro depende apenas do esforço de cada um.
“Quem assiste pode pensar que não conseguiu aquilo tudo [luxo, roupas de marca, acesso a festas caras] só porque tem algum defeito. Para quem tem só um banheiro em casa, é mal remunerado, pega três transportes públicos e não tem plano de saúde, as 24 horas não são as mesmas. Temos condições desiguais no Brasil, e isso não é responsabilidade individual”, afirma.
Liberdade x frustração
Andrea Jotta reforça que não podemos cercear a liberdade de quem quer mostrar sua vida nas redes sociais — mesmo que ela envolva luxos inacessíveis à maioria da população. Os estudantes têm direito de exibir as roupas caras ou o carro conversível, se assim quiserem.
Só que quem consome esses conteúdos deve ficar atento: é apenas uma curiosidade pelo diferente? Pode ser divertido acompanhar a vida de um perfil tão diferente do nosso. É inspirador? Há quem goste de procurar cópias mais baratas de um visual caro. Ou é frustrante? Se trouxer tristeza, ansiedade e angústia, é melhor evitar esses posts.
“A tecnologia não vai se importar com a nossa saúde mental. Se assistir a esses vídeos não lhe faz bem, não assista. Pesquise sobre outros assuntos no TikTok, para ensinar o algoritmo sobre o que você quer ver”, diz Jotta.
Importância de não depender das ‘curtidas’
Os alunos que gravam esses vídeos devem levantar os seguintes questionamentos:
💸“Estou deixando de viver porque preciso mostrar tudo o tempo todo?”
“É a lógica da nossa cultura atual: preciso converter tudo em uma imagem, que será consumida por alguém. Se for a um show, tenho de filmar. Se for a um restaurante, tenho de tirar foto do prato. Sentimos que precisamos produzir algo, e não só viver a experiência. Isso pode ser um problema para a saúde mental”, diz o psicólogo Marimpietri.
💸“Se esse meu post não fizer sucesso, como vou me sentir?”
É preciso ter estrutura emocional para que as reações a um post não virem o principal guia da autoestima: se algo viraliza e recebe comentários positivos, o influenciador fica feliz; se não gera engajamento ou se atrai muitas críticas, o ânimo vai embora.
“Mesmo ganhando muito dinheiro e mostrando seu sucesso, o ser humano tem de manter uma base de valores para se sentir bem. Ele pode mostrar a bolsa Chanel para os seguidores, mas seu bem-estar não deve depender disso”, diz Jotta.
“Ganhar afeto por algo que não construiu, como o patrimônio dos pais, vai, aos poucos, minando a confiança da própria pessoa. Ela deve se sentir plena também quando ajuda os outros, visita os avós ou brinca com uma criança. Uma coisa não pode substituir a outra. Depender só da audiência [para ser feliz] é ver sua autoestima se desestruturar quando bater qualquer vento”, afirma a psicóloga.
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