O g1 entrevistou a estudante de direito e consultora de diversidade, equidade e inclusão LGBTQIAPN+ Walleria Suri Zafalon, que contextualizou o cenário de vida da mulher trans. Walleria Suri Zafalon é estudante de direito, em Presidente Prudente (SP), e consultora de diversidade, equidade e inclusão LGBTQIAPN+
Toledo Prudente/AI
Viver como mulher em uma sociedade patriarcal não é fácil. Muitas se sentem inferiorizadas no ambiente de trabalho, sofrem com assédios sexuais, têm a opinião sobre determinados assuntos desconsiderada, entre outras situações ainda presentes em pleno século 21. A realidade é ainda mais dura com as mulheres transgêneras, que muitas vezes são agredidas e até mortas por assumirem viver como elas mesmas. O g1 conversou com a estudante de direito Walleria Suri Zafalon, moradora de Presidente Prudente (SP), que relatou como é a realidade da mulher trans no interior do Estado de São Paulo, um ambiente considerado conservador. No Dia Internacional da Mulher, celebrado nesta sexta-feira, 8 de março, a valorização do gênero feminino também abre espaço para reflexões de temas delicados.
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Ser uma mulher transgênera envolve coragem de aceitar quem você é para travar uma luta diária contra a sociedade machista. A estudante de direito Walleria Suri Zafalon soube, desde criança, que não se encaixava nos padrões do gênero com que nasceu e que a sociedade esperava que ela assumisse.
Depois de 30 anos, vivendo à base de antidepressivos e sendo assombrada por pensamentos suicidas, Suri decidiu parar de lutar contra ela mesma.
“Eu demorei, eu levei 30 anos tentando ser homem, aprender a ser homem, me identificar como homem. Mas, depois de 30 anos, eu entendi que isso não ia acontecer nunca ou que eu ia ser uma pessoa infeliz, eu já estava vivendo à base de antidepressivos, já estava pensando em suicídio. Foi quando eu falei: ‘Não, eu vou conseguir lutar contra o mundo, mas eu não vou mais lutar contra mim mesma.’ Aí eu iniciei minha transição”, explicou ao g1.
Suri, como prefere ser chamada, ao contrário da grande maioria da comunidade trans, teve o apoio de familiares e amigos durante o processo de reafirmação de gênero. Ela reconhece que vive com alguns privilégios, pois grande parte não conta com uma rede de apoio extensa e sequer concluiu o ensino médio.
Atualmente, ela estuda direito em um centro universitário particular, em Presidente Prudente, onde se sente respeitada e bem tratada pelos alunos e funcionários. Porém, conviver no cenário estudantil costuma despertar-lhe um sentimento “agridoce”.
“Eu me vejo como um ponto fora da curva, você não vê outras pessoas da comunidade trans também dentro da universidade seguindo o mesmo caminho. Ao mesmo tempo em que eu me sinto uma privilegiada, isso me entristece porque percebo que eu faço parte de uma comunidade que não tem acesso à universidade”, lamentou Suri.
A luta por representatividade, respeito e direitos iguais sempre fez parte de quem ela é. Além de estudante, Suri é consultora de diversidade, equidade e inclusão de pautas LGBTQIAPN+. Em meio aos estudos na área, ela explica que algumas pesquisas no campo da psicologia dizem que o processo de identidade de gênero é baseado em três fatores: biológico, social e cognitivo.
“O fator biológico, que é o corpo, influencia bastante, mas não é o que determina por si só. Eu, por exemplo, nasci com um corpo de menino perfeito. Um outro fator é o social, é o quanto as pessoas te colocam nesse lugar do seu gênero. Então, quando a gente nasce, já tem o nosso quarto, se for menina é rosa, se for menino é azul, já tem o nome. Já tem todos os ensinamentos. Já tem todas as expectativas sociais em volta já, se colocando nesse lugar dos gêneros esperados. Tem o fator biológico, o fator social, mas tem o fator cognitivo, individual da pessoa. É o que eu faço com tudo isso. O que eu faço com o meu corpo, com o que o meu corpo está dizendo, e o que eu faço com o que as pessoas, a sociedade estão me dizendo. E aí, cognitivamente, se isso não se harmonizar em mim, esses outros fatores não vão ser suficientes para determinar meu gênero. E foi o que aconteceu comigo. Mesmo meu corpo dizendo que eu era um menino, mesmo minha família, as pessoas dizendo que eu era um menino, cognitivamente, individualmente, isso para mim não estava batendo. Falei: ‘Peraí, não estou reconhecendo isso como natural’. Não estava fazendo sentido. Então, esse elemento cognitivo é o principal, é o que vai ali determinar a nossa identidade de gênero”, reforçou Suri ao g1.
Walleria Suri Zafalon é estudante de direito, em Presidente Prudente (SP), e consultora de diversidade, equidade e inclusão LGBTQIAPN+
Toledo Prudente/AI
Mudança de nome no processo transexualizador
Para Suri, um fator determinante para evitar situações constrangedoras e olhares preconceituosos foi a mudança de nome na Certidão de Nascimento. Ela considera que tal alteração é mais importante do que uma possível cirurgia de redesignação sexual, pois facilita na etapa do processo transexualizador, antes conhecido como transição de gênero.
“É muito constrangedor você estar no espaço, apresentando uma figura feminina, uma vestimenta feminina, e aí quando você solicita um documento, você apresenta um documento com o nome masculino. Isso, nitidamente, já muda a postura da pessoa diante de você. Isso quando o seu nome não tem de ser anunciado, para muitas pessoas ouvirem, dentro de um consultório ou dentro de uma sala de aula, uma chamada, alguma coisa assim”, disse.
Em 2012, Suri precisou mover uma ação judicial para poder alterar seu nome na Certidão de Nascimento. O pedido dependia da decisão de um juiz, que podia aceitar ou não conforme critérios particulares. Após uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, qualquer pessoa transgênera pode ir diretamente a um Cartório de Registro Civil com alguns documentos em mãos e solicitar a mudança do nome e do sexo na Certidão de Nascimento.
De acordo com a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen-SP), os cartórios de Presidente Prudente realizaram 18 alterações de nomes e gêneros nas certidões entre 2022 e fevereiro de 2024. Desse número, oito foram solicitadas por mulheres trans.
Caso não queira retificar o nome civil, a pessoa pode adotar o nome social no Registro Geral (RG), que incluirá o nome da Certidão de Nascimento e o nome desejado.
Walleria Suri Zafalon é estudante de direito, em Presidente Prudente (SP), e consultora de diversidade, equidade e inclusão LGBTQIAPN+
Toledo Prudente/AI
Marginalização em meio ao conservadorismo
Assumir quem você é contradizendo o que as pessoas esperam que seja é um ato de coragem e resistência. Para Suri, o cenário brasileiro está longe de ser saudável e ideal para viver, visto que “o Brasil é o campeão de assassinatos contra mulheres trans”.
“A gente sabe que o Brasil é um país bastante hostil para as mulheres trans. A gente tem de lembrar que, desde 2008, o Brasil é o campeão de assassinatos contra mulheres trans, ocupa o primeiro lugar no ranking mundial já há tantos anos. O Oeste Paulista não é diferente”, pontuou.
Ainda conforme a consultora, a região de Presidente Prudente, onde ela vive, ainda é muito conservadora e tem dificuldade de reconhecer o gênero da mulher trans. Devido a essa resistência, muitas sentem medo de sair na rua à luz do dia. Consequentemente, a marginalização começa, já que a grande maioria não consegue concluir o ensino médio, ingressar em uma universidade e garantir uma oportunidade de emprego na área que deseja.
“O ambiente escolar ainda é um ambiente bastante hostil, tem bastante dificuldade de falar sobre o tema dentro das escolas. Você tem aquela ideia de ideologia de gênero, que você vai levar uma doutrinação para que as pessoas se transformem em LGBT dentro da escola se você falar sobre o tema. Então, as escolas ainda não estão preparadas. O mercado de trabalho ainda é muito escasso, muito desafiador. Então, você tem um número grande de mulheres trans ainda tendo de sobreviver através do sexo profissional. Esse é o cenário do país e eu acredito que ele é um pouco mais aprofundado na região de Presidente Prudente”, ressaltou Suri.
Outro fator que reforça a exclusão da comunidade, segundo a consultora, é a falta de políticas públicas por parte da Prefeitura de Presidente Prudente. Os cidadãos transgêneros carecem de projetos voltados a acolhimento, proteção e incentivo, pois “não têm dentro da Assistência Social, dentro da Secretaria de Educação, dentro da Secretaria de Saúde, que seriam os lugares mais importantes dentro dos órgãos de segurança, políticas voltadas para proteção ou afirmação de gênero dentro dessa população”.
Além disso, a falta de representatividade de vereadores da comunidade dentro da Câmara Municipal, que costuma legislar sobre projetos para melhorar a qualidade de vida da população, é outro fator determinante para a exclusão, conforme a consultora.
Ao ser questionada sobre os apontamentos, a Prefeitura de Presidente Prudente informou ao g1 que a política de assistência do município tem como princípio atender todos aqueles que dela necessitem, independentemente de gênero, orientação sexual ou etnia.
“Dessa forma, os serviços de acolhimento da pasta, tais como os Cras [Centros de Referência de Assistência Social] , Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social] e Sapru [Serviço de Acolhimento para Pessoas em Situação de Rua], estão preparados para atender a este público com equidade e dignidade, assim como ocorre em todos os demais setores da administração municipal”, concluiu a nota oficial.
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Toledo Prudente/AI
Dia da Mulher poderia ser todo dia 🌹
Apesar das dificuldades, dos preconceitos e da falta de incentivo, o Dia Internacional da Mulher traz uma luz para as pautas da comunidade, que devem ser legitimadas como mulheres, acima de tudo.
“No caso do recorte das mulheres trans, é importante para que elas também sejam legitimadas dentro do gênero feminino, porque existe essa dificuldade de reconhecimento das mulheres trans como mulheres, porque muitos entendem que ‘não sou mulher, sou um homem, são homens que se sentem mulheres, são homens que querem ser mulheres’. Na verdade, são mulheres que nasceram com corpo diferente das mulheres cisgêneras, mas elas não podem ser vistas como menos mulheres ou não mulheres por conta disso. A inclusão das mulheres trans nessa celebração é uma forma de legitimação do gênero delas também”, reforçou.
Suri contou que todo dia 8 de março ela se sente incluída e reconhecida como mulher através da bandeira do feminismo, que luta pela igualdade social e de direitos para as mulheres combaterem o patriarcado. Que esse sentimento ultrapasse todas as 24 horas presentes no Dia Internacional da Mulher e prevaleça durante as 8.766 horas de todo ano.
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