20 de novembro de 2024

‘Nada pra nós sem nós’: 3º maior do país, povo quilombola do PI quer protagonismo; projeto leva Justiça em poesia e cordel


Projeto premiado pelo Conselho Nacional de Justiça usa arte para se aproximar da população e informar grupos com histórico de preconceito e exclusão das políticas públicas. PITV2 de terça-feira – 19/11/2024 – na íntegra
“Nada para nós sem nós, nada de nós sem nós”. É o lema da quilombola Maria Félix, moradora da comunidade Macacos, em São Miguel do Tapuio. Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o g1 mostra uma iniciativa que mira na principal demanda das comunidades quilombolas no estado: protagonismo. Com cordel e poesia, um projeto premiado do Tribunal de Justiça do Piauí tem levado mais que documentos ou serviços, mas algo que não se pode tirar: conhecimento.
O pedido por mais valorização participação e protagonismo nas políticas públicas é unânime entre quilombolas com os quais o g1 conversou de Norte a Sul do estado. O Piauí tem a 3ª maior população quilombola do país, com cerca de 5 mil moradores.
Para se ter uma ideia do tamanho, em segundo lugar no Piauí está a comunidade Riacho dos Negros, que tem cerca de 660 habitantes, ou seja, pouco mais de 10% do total de moradores da comunidade Lagoas. Os dados são do levantamento “Contexto das Comunidades Quilombolas no Estado do Piauí”, feito pelo Tribunal de Contas do Estado entre 2022 e 2023, portanto bastante atual.
Nos relatos, algumas impressões são gerais: as comunidades querem respeito, mais participação e empoderamento para proteção da cultura ancestral.
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‘Nada pra nós sem nós’: 3º maior do país, povo quilombola do PI quer protagonismo; projeto leva Justiça em poesia e cordel
Divulgação/TJPI
O protagonismo quilombola já foi tema de profundo estudo do sociólogo piauiense Clóvis Moura, que ainda na década de 1950 analisou a importância do negro quilombola, portanto um escravizado rebelde, para a evolução da sociedade brasileira.
Em seu livro “Rebeliões da senzala”, ele avaliou que, ao contrário do que até hoje muitos acreditam, os negros não aceitaram passivamente a escravização e lutaram contra o regime escravista, alterando as bases da sociedade brasileira tanto do ponto de vista econômico quanto social. Os quilombos, espaços de resistência dos negros fugidos dos trabalhos forçados, eram “espaços de negação da ordem estabelecida”.
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“A dinâmica da sociedade brasileira no que diz respeito à passagem da escravidão para o trabalho livre teve, assim, no quilombola, no elemento rebelde e que por isto mesmo negava o regime existente, um fator positivo. (…) A rebeldia era, portanto, uma categoria sociológica dinâmica dentro daquele tipo de sociedade e servia não apenas para equacionar, mas dinamizar a realidade”, avaliou o estudioso.
Festa de Reisado do Quilombo Macaco
Para Maria Félix, “nada para nós sem nós” é o que resume a importância e necessidade de participação dos povos tradicionais em todos os processos realizados pelo estado. Nada pode ser construído para um povo sem a participação dele.
Ela diz que o protagonismo de pretos e quilombolas na formulação de políticas públicas é mais importante que ações isoladas. Para Maria, isso passa principalmente pela educação e empoderamento para superar e enfrentar preconceitos.
“Tudo começa pela educação, tivemos várias escolas fechadas [na cidade] e lutamos para manter. Nossos antepassados passaram por isso e hoje ainda enfrentamos isso na pele, com nossos filhos. Nosso papel é conscientizar jovens para que se reconheçam como pessoas negras, como pessoas quilombolas, o preconceito é grande dentro e fora”, disse.
Ela comentou ainda sobre como o preconceito impacta a preservação da cultura negra. “Na nossa comunidade as nossas culturas estão se perdendo, nossos jovens não querem participar, mas queremos que estejam incluídos para manter nossas tradições quando os mais velhos não estiverem mais aqui, é difícil, se auto assumir é difícil, mas não porque não queiram, mas porque sabem que vão sofrer preconceito”, declarou.
O jovem quilombola Giliard Feitosa destaca o processo de socialização e educação sob a sombra do sistema de herança escravista e hierárquico. Ele é morador do Quilombo Mutamba, na cidade de Paquetá, que fica 300 km ao Sul de Teresina. Segundo ele, é difícil que um jovem queira se identificar como quilombola e valorize as raízes ancestrais africanas quando foi ensinado desde cedo que sua cultura e sua gente é inferior.
“Crescemos escutando uma ideologia que deslegitima, desvaloriza, nos põe pra baixo, se o preto tem dificuldade de se identificar como preto, como quilombola, isso vem do fato de ser socializado e educado em um ambiente racista e excludente, que desenhou essa gente, essa etnia como essencialmente inferior às outras, uma ideologia violenta, racista”, disse.
“Vivemos sob a sombra da escravidão que acabou recentemente, e a sociedade continua estruturando relações que em grande medida se parecem com a era escravocrata, de mando do superior ao inferior, entendendo que um está em cima e o de baixo deve obediência cega. Um sistema escravocrata mal criticado que ainda alimenta nossas relações”, reforçou.
Algumas das principais demandas dizem respeito a questões relativamente simples, mas que não cumpridas geram grandes prejuízos. A principal delas é a regularização e titulação do território. Giliard e Maria destacam que de um universo 230 comunidades, apenas 23 são tituladas como espaços quilombolas. Por meio do reconhecimento é que é possível ter acesso a políticas públicas especialmente pensadas para os povos tradicionais.
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“Com a titulação, nenhum órgão pode negar políticas públicas, conseguimos com mais facilidade o CAF (Cadastro da Agricultura Familiar), acesso ao crédito, benefícios como salário maternidade, aposentadoria, Já há o preconceito de que negro quilombola toma terra, então garantimos assim um lugar de moradia para o resto da vida e para nossos descendentes”, explicou Maria.
Justiça em rimas
Poema do Juizado Especial de São Raimundo Nonato
O território ocupado pela população da comunidade Lagoas, a maior do estado, abrange seis municípios, sendo o maior deles São Raimundo Nonato, cidade que fica 525 km ao Sul da capital. Foi lá que o Tribunal de Justiça decidiu atuar de início com o projeto Trilha de Direitos, entendendo a importância de garantir cidadania e, de fato, justiça a essa parcela dos piauienses.
Usando cordel, repente e poesia, o projeto ganhou o prêmio Linguagem Simples do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2024 às iniciativas e projetos que facilitam o entendimento e acesso da população ao sistema judiciário.
“É algo ótimo, o principal é que agora a gente sabe com quem falar, quem procurar, onde buscar nossos direitos, porque o nosso território infelizmente é de pessoas menos informadas de seus direitos e agora as pessoas sabem mais, a partir desse projeto, onde buscar documentação, um apoio”, conta Raimundo Nonato Oliveira, liderança da comunidade Lagoas.
‘Nada pra nós sem nós’: 3º maior do país, povo quilombola do PI quer protagonismo; projeto leva Justiça em poesia e cordel
Divulgação/TJPI
“O TJPI Descomplica [outro projeto do TJPI] e o Trilha de Direitos são duas grandes ações promovidas pela Corregedoria que, buscando traçar um elo mais eficiente com os jurisdicionados piauienses, transportam as informações jurídicas à população, de forma mais clara e didática. São projetos fundamentais como estes que estão impactando e aprimorando o contato da sociedade com o 1º Grau de jurisdição piauiense”, declarou o corregedor-geral do Tribunal, desembargador Olímpio Galvão.
Capitaneado pela juíza Uismeire Ferreira, o projeto Trilha de Direitos iniciou para atender às demandas que as populações quilombolas da região onde ela atua levavam ao judiciário. Além disso, para conhecer aquelas demandas que não chegavam à Justiça porque as pessoas não sabiam sequer que tinham alguns direitos. Quando sabiam, não viam meios de recorrer ao judiciário.
“Quando converso com eles, eles dizem que toda ajuda é importante, porque são muitas demandas. Por serem muitas comunidades na Zona Rural, fica tudo muito distante. Não havia muitas demandas ao próprio judiciário, mas muito por não saberem que tinham direitos”, contou a magistrada ao g1.
O projeto, então, passou primeiro a monitorar as necessidades dos povos tradicionais nas cidades atendidas pela Comarca de São Raimundo Nonato, que é composta pelo município sede e outros oito: Bonfim do Piauí; Coronel José Dias; Dirceu Arcoverde; Dom Inocêncio; Fartura do Piauí; São Braz do Piauí; São Lourenço do Piauí e Várzea Branca.
Após pesquisa de campo e conversas olho no olho, os recursos de linguagem como o cordel e o poema surgiram como ferramentas não só de aproximação com a população, mas também de valorização da cultura local. Houve então quase 10 encontros com a população, o desenvolvimento de uma cartilha e a produção artística. O tema? O judiciário de forma simples, acessível e até em rimas.
“Eu fiz o poema pra abertura dos trabalhos e participei também do encerramento. Não sou artista, sou oficial de Justiça há 37 anos, mas faço diariamente versos, repentes, poesias. E foi um grande prazer participar desse projeto”, disse Ulisses José, o autor do poema, que oficialmente é servidor do Tribunal de Justiça, mas tem a arte no seu cotidiano.
“No Juizado Especial, tem coisa de todo jeito! Seja uma briga por causa de umas galinhas, um celular quebrado, ou um vizinho barulhento, está tudo valendo! No Juizado Especial, também, acontece o julgamento de casos criminais leves, tipo uma briga de bar ou umas ‘brincadeiras’ que deram errado”, diz trecho da cartilha.
Cartilha do TJPI simplifica e facilita compreensão sobre acesso ao judiciário
Divulgação/TJPI
O quilombola Raimundo Nonato diz que, a partir do projeto, o TJ “diminui distâncias”, já que muitos documentos como RG e certidões de nascimento somente estavam disponíveis no Fórum, que fica muito longe para muitas famílias. Com o projeto, tudo isso se aproximou. “Essa parceria com o juizado tem nos ajudado bastante, de saber onde estão documentos, então a Trilha de Direitos nos ajudou a saber”, informou.
“Reduzir distâncias” é a expressão que a juíza Uismeire usa com frequência para resumir o principal benefício do projeto, aproximando a Justiça, em todos os seus significados, de quem ao longo dos é vítima frequente da invisibilização social e injustiças.
“A gente trabalhou com as demandas que eles traziam pra gente, o que a gente conseguiu foi entender que eles tinham muitas dificuldades pelo distanciamento, precisamos dos carros da corregedoria para chegar lá, mas foi o nosso objetivo: aproximar. Deixamos WhatsApp, telefone, se precisassem procurar o juizado. Esse distanciamento acaba deixando eles isolados. Em um primeiro encontro, ouvimos as demandas, nos próximos, levamos não apenas o Juizado Especial, mas Justiça Itinerante e vários outros que aproximam a sociedade do judiciário”.
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