23 de setembro de 2024

‘Não sei por que passei por eletrochoque’: ex-internos de alas psiquiátricas relatam reinvenção com tratamento humanizado

Até domingo (14), data que marca centenário do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, em Campinas (SP), g1 publica série de reportagens sobre trajetória da loucura e humanização de tratamentos em saúde mental no Brasil. Ex-interno de hospitais psiquiátricos relembra uso de camisa de força e eletrochoque
Silvio e Silvana, de 82 a 59 anos, respectivamente, dividem mais do que a semelhança nas quatro primeiras letras do nome. Ambos passaram por tratamentos que vão do eletrochoque ao uso de camisa de força após serem diagnosticados com transtorno bipolar e internados em manicômios na região de Campinas (SP).
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Para Silvio Burza, a jornada de internações começou em 19 de dezembro de 1983, data que ainda guarda “na ponta da língua”. Pai de três filhos, o ex-interno começou a manifestar os primeiros sintomas da bipolaridade quando tinha 40 anos, o que levou à primeira hospitalização.
“Os métodos de tratamento eram muito complicados. Era muita medicação. Eu chegava a tomar 17 comprimidos por dia, sendo que hoje eu tomo 3. […] Eu não sei por que passei por eletrochoque, camisa de força, sendo que isso aí não precisava”, conta.
📑 Procedimentos como a camisa de força, definidos como “lesivos à personalidade e à saúde física ou psíquica dos pacientes”, são proibidos pelo Conselho Federal de Medicina em quaisquer estabelecimentos de saúde desde 1994.
Alguns anos depois, em 2001, a lei 10.216 deu o passo considerado por especialistas como o mais importante para a reforma psiquiátrica no Brasil ao determinar os direitos dos pacientes e instituir um novo modelo de tratamento de transtornos mentais no país.
🧠 Até domingo (14), data que marca o aniversário de 100 anos do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, que é referência no atendimento em saúde mental em Campinas (SP), o g1 publica a série de reportagens “Eu sou um louco”, que aborda a trajetória da loucura e a humanização das intervenções em saúde mental após a reforma psiquiátrica no Brasil.
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Silvio Burza, de 82 anos, hoje comanda a cafeteria do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, em Campinas (SP)
Gabriella Ramos/g1
‘Liberdade é sempre o melhor remédio’
Ao todo, Burza passou mais de uma década entrando e saindo de internações. A transição para tratamentos mais humanizados após a Lei da Reforma Psiquiátrica possibilitou que ele saísse da ala de internação há 25 anos – para onde não retornou desde então.
“Vejo que os próprios profissionais são bem mais preparados, mais humanizados, [existe] mais amor. A gente consegue ter um diálogo mais aberto. Como eu digo, trancar não é tratar. Liberdade é sempre o melhor remédio”, afirma o ex-interno.
Hoje, Silvio comanda a cafeteria do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, antigo manicômio que se tornou referência internacional no cuidado humanizado para transtornos mentais. Além disso, atua em um grupo de apoio para famílias de pessoas com dependência química na metrópole.
“Se você tiver um problema, não fique chateado pensando que vai a um psicólogo ou psiquiatra e vão chamar você de louco. […] É interessante tirar esse estigma. Eu sou um louco. Sou um louco por cultura, sou um louco pelo amor e pela saúde”.
Entre altas e internações
Silvana Borges convive com transtorno bipolar, mas o primeiro diagnóstico, aos 22 anos, tinha um nome diferente: psicose maníaco-depressiva. O termo, que mais tarde caiu em desuso na psiquiatria, foi o que motivou a primeira internação em um manicômio de Itapira (SP) em 1987.
“Ali você via muita coisa, via pacientes andando em fila indiana. E nesse local, infelizmente, eu passei por camisa de força, nas duas vezes que estive internada lá. As internações lá duravam de mais de 100 dias”, relembra.
Borges passou os anos seguintes entre altas e internações, tanto no estado de São Paulo quanto em Minas Gerais. Após a morte dos pais, em 1999, passou a morar com a irmã, que a incentivou a frequentar uma igreja diariamente para curar “problemas espirituais”.
“Minha irmã não tinha conhecimento e pensava que eu tinha um problema espiritual. Ela me mandava para uma igreja todos os dias, e isso não resolveu o meu problema. O que precisava resolver o meu problema era um tratamento psiquiátrico correto”, conta.
Silvana Borges, de 59 anos, é ‘loucutora’ da Rádio Maluco Beleza
Silvana Borges/Arquivo pessoal
A voz da ‘loucutora’
Para Silvana, a transferência para o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira no fim da década de 90 – período em que a instituição deixou de ser um hospital fechado e adotou o modelo de tratamento humanizado – foi um divisor da própria história.
Hoje, Borges faz acompanhamento psiquiátrico em uma unidade do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) a cada 28 dias. Ela é artista visual, poetisa e também se autodenomina “loucutora” na “Rádio Maluco Beleza”.
O projeto da rádio, lançado em 2003, é produzido por usuários do serviço de saúde e pode ser acompanhado pela internet.
“A minha vida tem duas fases: o antes e o depois do Cândido. Eu posso dizer isso com certeza. Tudo o que vivi antes e tudo aquilo que eu vivo depois. […] Estar dentro dessa área de comunicação é dar voz a tudo aquilo que precisa ser falado, que precisa ser dito, que precisa ser comunicado”.
Ativista da luta antimanicomial, Silvana teve a biografia publicada em um livro e usa a poesia para traduzir a revolta reprimida em anos de tratamentos psiquiátricos inadequados, como descreve no texto autoral “Liberdade”. Leia abaixo:
“Quero gritar
Meu grito de liberdade
Quero gritar
Para toda a sociedade
Quero gritar
Para a sua comunidade
Mas não me deixe de ouvir
Pois, quando falo, falo
Que sou mais um
Sou mais dois
Sou mais mil
Sou mais
A verdadeira voz
Da liberdade”
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