27 de dezembro de 2024

O alto custo de fugir da guerra da Ucrânia para os soldados que desertam do Exército russo


Quantidade de soldados que desertaram das suas unidades ou não regressaram à frente de batalha após períodos de licença na Rússia é recorde. Conheça algumas histórias. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia já se arrasta por quase três anos.
BBC
Os tribunais russos registraram um número recorde de soldados que desertaram das suas unidades ou não regressaram à frente de batalha após períodos de licença, segundo uma investigação conduzida pelo Serviço Russo da BBC.
Muitos desertores se refugiam na casa de familiares, que também correm o risco de serem processados.
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Na manhã de 23 de março de 2023, em uma aldeia na região de Stavropol, no sul da Rússia, um jovem chamado Dmitry Seliginenko levou sua namorada de motocicleta para pagar suas contas no escritório das autoridades locais.
Seis meses antes, ele havia sido convocado para combater na Ucrânia, em meio à mobilização militar convocada pelo presidente russo, Vladimir Putin. Ele deveria ter voltado para a frente de batalha em março deste ano.
Mas Seliginenko não retornou à sua unidade, depois de 10 dias de licença médica. Por isso, ele foi incluído na lista de pessoas procuradas pela Rússia.
Caminhando pela aldeia, o jovem foi localizado pelo seu antigo colega de classe, Andrei Sovershennov. Ele havia entrado para a polícia, depois de terminar os estudos, e avisou a polícia do exército.
Pouco tempo depois, três homens tentaram deter Seliginenko enquanto esperava sua namorada. Ele conseguiu entrar em contato com sua mãe e seu padrasto, que foram até a aldeia para intervir na situação.
A partir daqui, existem duas versões diferentes sobre o ocorrido.
Segundo a versão oficial da polícia, o padrasto de Seliginenko, Aleksandr Grachov, agarrou as algemas de Sovershennov e gritou: “Prendam a mim.” Em seguida, ele teria derrubado um policial no chão e começado a agredi-lo.
A versão da família conta que Aleksandr Grachov é que teria sido lançado ao chão e agredido, ao exigir a apresentação do mandado de prisão do seu enteado.
Os dois acabaram no hospital e Grachov foi posteriormente acusado de agressão ao policial. Já Seliginenko entrou no carro dos pais e foi embora.
O incidente gerou um debate acalorado em um grupo de bate-papo criado pelos moradores da aldeia.
A família de Seliginenko afirma que seu filho não deveria sequer ter sido alistado no Exército; que ele não passou por exame médico adequado para verificar se realmente seria apto para o serviço; e que foi enviado para a frente de batalha, mesmo com resultado positivo no teste para o coronavírus.
Em janeiro de 2023, Seliginenko apresentou doenças de pele, causadas pelo frio extremo. Por isso, ele recebeu uma licença para descansar.
Dois dias depois de chegar em casa, ele foi submetido a uma operação gástrica. A família defende que ele não estava apto para o serviço militar e deveria ter sido avaliado por uma comissão médica do exército.
Mas nem todos no grupo de bate-papo concordavam com estes argumentos. Em resposta, a família publicou um apelo emocionado aos seus vizinhos:
“Aqui, você está vivendo comodamente na nossa aldeia. Mas quem de vocês virá conosco para um hospital de Pyatigorsk, Budyonnovsk ou Rostov [cidades no sul da Rússia] para ver quantos soldados feridos jazem ali?”
“Antes de julgar os demais, coloquem-se no lugar da mãe e do seu filho, que já sofreram tanto… Vocês têm seus maridos e filhos ao seu lado; é melhor rezar para que o mesmo não aconteça com vocês!”
Em março de 2024, Aleksandr Grachov foi considerado culpado de agressão e multado em 150 mil rublos (US$ 1,5 mil, cerca de R$ 8,9 mil). Dmitry Seliginenko não retornou à sua unidade militar e seu paradeiro é desconhecido.
Nenhum dos envolvidos quis falar com a BBC.
‘Eles levaram todos os homens’
Os desertores enfrentam a polícia do exército russo.
BBC
A centenas de quilômetros do vilarejo na região de Stavropol, outros dois casos foram levados à Justiça, em um tribunal de Buriatia, uma república no outro lado da Rússia.
No banco dos réus, estavam o soldado Vitaly Petrov e sua sogra, Lidia Tsaregorodtseva. Ele havia desertado da sua unidade e ela havia tentado impedir a detenção do genro pela polícia local.
A BBC reconstruiu os acontecimentos a partir dos documentos judiciais e do testemunho de pessoas familiarizadas com o caso. Estas pessoas não serão identificadas por razões de segurança.
Vitaly Petrov tem 33 anos de idade. Ele é originário de Sharalday, na República de Buriatia, e é pai de dois filhos. Petrov foi convocado para combater na Ucrânia em 2022.
A região é uma das mais pobres da Rússia. No outono de 2022, seu índice de mobilização era um dos mais altos do país, bem como o índice de mortes, segundo investigação da BBC e do portal informativo independente russo Mediazona.
Em junho de 2023, Petrov escapou de um hospital militar. Ele estava internado depois de se ausentar sem permissão e ter sido devolvido à sua unidade à força no início daquele ano.
Sua sogra afirma que ele não estava apto para o serviço militar e sentia dores de cabeça. Ela também declarou ao tribunal que Petrov havia sofrido violência e extorsão na sua unidade militar.
Os fiscais militares afirmam que Petrov simplesmente tentava evitar que fosse novamente enviado para a frente de batalha.
Durante o verão e o outono de 2023 (no hemisfério norte), Petrov se escondeu na casa da sogra. Ele passava a maior parte dos dias no bosque próximo, procurando castanhas, cogumelos e frutas silvestres, voltando para casa à noite de vez em quando, para dormir.
O ativista Grigory Sverdlin, da ONG Run to the Forest (que ajuda os soldados que desertaram do exército a fugir do país), calcula que cerca de 30% dos desertores permanecem em território russo. Os demais seguem para o exterior.
A Mediazona afirma que existem mais de 13 mil casos pendentes nos tribunais russos, por acusações de deserção e ausências sem permissão.
Em dezembro de 2023, policiais armados estiveram na casa à noite, para deter Petrov. O que ocorreu em seguida também tem diferentes versões.
Tsaregorodtseva afirma que a polícia derrubou a porta e invadiu a casa. Eles a separaram das suas duas netas pequenas, que estavam apavoradas, e começaram a revistar a residência, levantando as tábuas do piso com um machado.
Ela também afirma que os policiais não mostraram suas identificações, nem a ordem judicial. As autoridades negam a acusação, segundo os documentos judiciais. Eles também destacaram que não revistaram a casa, nem tiraram nada do lugar.
Tanto a família quanto a polícia declararam que Petrov saiu do seu esconderijo no porão e suas filhas correram na sua direção.
Nos documentos judiciais, tanto a família quanto a polícia se acusam mutuamente de violência, já que surgiu um conflito enquanto os policiais tentavam deter Petrov.
Ele foi arrastado para fora da casa e, segundo suas filhas pequenas, a polícia o atingiu com uma pistola elétrica. O principal investigador do caso foi levado ao hospital com queimaduras produzidas por água fervente durante o enfrentamento.
Petrov e Tsaregorodtseva foram processados. Ele foi condenado a seis anos de prisão por se ausentar do exército sem permissão. A sogra foi condenada a dois anos de cadeia a ao pagamento de uma indenização de 100 mil rublos (quase US$ 1 mil, cerca de R$ 5,9 mil) ao policial que ficou ferido durante o conflito.
Uma fonte familiarizada com o caso declarou à BBC que a esposa de Vitaly Petrov ficou aliviada ao saber que seu marido estava na prisão e não de volta à frente de batalha.
Outra fonte da BBC também declarou que a guerra trouxe graves consequências para os moradores das zonas rurais.
“Eles levaram todos os homens das aldeias, não ficou ninguém para fazer o trabalho duro, cuidar dos animais e preparar tudo para o inverno. Um menino está doente e o outro está morto de medo. Perdoem a expressão, mas, nas aldeias, ficaram só as mulheres, falando com as paredes.”
A mesma fonte afirmou que muitos homens daquela localidade se sentiam em uma “situação impossível”: eles foram enviados para a guerra, quisessem ou não, enquanto suas famílias ficavam lutando sozinhas em casa.
Sete anos por deserção
Outro caso observado pela BBC foi o de um soldado condenado.
Em janeiro de 2023, Roman Yevdokimov, de uma aldeia na fronteira entre a Rússia e a Mongólia, foi condenado a sete anos de prisão por desertar da sua unidade.
Yevdokimov tem 34 anos e havia sido condenado por roubo em duas ocasiões. Ele foi chamado para o serviço militar em outubro de 2022, como parte da mobilização nacional convocada por Putin.
Yevdokimov passou apenas um mês no exército, até que se ausentou sem permissão e voltou para casa. Ele passou algum tempo refugiado no bosque e seus familiares o escondiam no porão da casa da sogra.
Por fim, as autoridades militares o capturaram e ele foi para a prisão. Mas, como criminoso condenado, ele tinha a possibilidade de ir lutar na Ucrânia, em vez de cumprir sua pena.
Yevdokimov sobreviveu por seis meses como soldado de choque e, seguindo as normas da época (hoje, modificadas), ele foi liberado e voltou para casa em abril de 2024.
Sua família conta que, nos seis meses que passou na frente de batalha, ele ficou traumatizado e incapaz de retomar sua vida anterior. Agora, ele passa grande parte do tempo no bosque, onde antes se escondia da polícia do exército.
Como soldado da tropa de choque recrutado na prisão em 2023, Yevdokimov conta com um indulto oficial, anulando sua pena de sete anos por deserção. Mas não existem documentos que comprovem que ele lutou no exército e ficou ferido em combate.
Muitos veteranos de batalha recrutados na prisão tentam agora levar o Ministério da Defesa russo à justiça, para exigir o reconhecimento da sua situação.
Mas, para Yevdokimov, a viagem de quatro horas até o escritório de recrutamento mais próximo, para tentar resolver seus problemas, é simplesmente longa demais para ser considerada.
“Quando fui vê-lo, ele disse, depois de algumas doses de bebida: ‘Talvez eu devesse me inscrever para ser soldado contratado?'”, declarou sua irmã à BBC.
“Não vou deixar que ele vá e ele tem medo de me deixar, porque sabe o quanto me preocupo com ele. Mas ele quer voltar aos seus companheiros, porque alguns estão morrendo e ele está preocupado com eles. Está sofrendo por estar ali.”
Estes casos são apenas uma pequena fração do alto número de pessoas que chegam agora aos tribunais.
Os registros oficiais demonstram que, em 2024, cerca de 800 soldados foram condenados. Eles foram acusados de terem se ausentado sem permissão, descumprido ordens ou desertado das suas unidades.
Segundo a Mediazona, este número representa o dobro do ano anterior, ou mais de 10 vezes o número de condenações antes da guerra.
Não existem estatísticas oficiais sobre o número de familiares que também foram condenados por terem ajudado os soldados desertores.
* Com colaboração de Olga Ivshina.
Editora: Olga Shamina.
Ilustrações da equipe de jornalismo visual da BBC News Rússia.

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