25 de fevereiro de 2025

O cirurgião que vai a julgamento na França acusado de abuso sexual contra 299 menores de idade


França assiste assim a um novo julgamento de violência sexual sem precedentes, que teve início apenas dois meses após a sentença de Dominique Pelicot. Cirurgião aposentado enfrentará julgamento sem precedentes em Vannes, França
AFP/Getty Images via BBC
Uma data, um nome, um sobrenome e detalhes minuciosos dos estupros e abusos sexuais que cometeu contra seus pacientes.
A maioria, meninos e meninas, quase sempre quando estavam sedados, na enfermaria ou se recuperando de algum procedimento médico.
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É disso que tratam os diários que o cirurgião francês aposentado Joël Le Scouarnec, 74 anos, acumulou durante anos.
Segundo a acusação, o médico nascido em Paris cometeu crimes sexuais quando trabalhou no sistema de saúde francês durante quase 30 anos.
Nesta segunda-feira (24), foi iniciado o maior julgamento de pedofilia que a França já viu, no tribunal criminal de Morbihan, em Vannes, no noroeste do país.
Lá, Le Scouarnec começou a julgado pelos crimes de violação e agressão sexual agravada contra 299 vítimas. Na abertura do julgamento, o cirurgião aposentado disse que cometeu atos “desprezíveis”, segundo a agência Reuters.
“Estou ciente de que o dano que causei é irreparável”, afirmou ele. “Eu devo a todas essas pessoas e aos seus entes queridos admitir minhas ações e suas consequências, que eles suportaram e continuarão tendo que suportar por toda a vida.”
Assim, a França assiste assim a um novo julgamento de violência sexual sem precedentes, que teve início apenas dois meses após a sentença de Dominique Pelicot, condenado em dezembro passado por violar e drogar a sua esposa para que outros 50 homens pudessem abusar dela enquanto ela dormia.
Foi um caso que chocou os franceses e o mundo inteiro depois que a vítima, Gisèle Pelicot, renunciou ao seu direito ao anonimato e tornou públicas as atrocidades que sofreu.
‘Um verdadero pervertido’
Le Scouarnec, atualmente detido por outros quatro casos julgados em 2020, enfrenta 20 anos de prisão, a pena máxima para o crime de estupro na França.
A média de idade das vítimas apontadas na acusação quando sofreram o abuso é de 11 anos, segundo o promotor do caso, Stéphane Kellenberger.
Do total, 158 são homens e 141 são mulheres. Apenas 14 deles tinham mais de 20 anos quando foram atacados, enquanto 256 tinham menos de 15 anos.
Os ataques teriam sido cometidos durante a passagem por diferentes hospitais e centros de saúde franceses, principalmente na região da Bretanha, no noroeste do país.
Os eventos mais antigos datam de janeiro de 1989 e os mais recentes datam de janeiro de 2014.
A advogada Francesca Satta representa uma dezena de vítimas e parentes que se apresentaram como partes civis, incluindo os pais e avós de dois homens que, após saberem pela polícia que apareciam nas anotações do diário do cirurgião, cometeram suicídio.
Ela também representa o filho de um ex-paciente que tirou a própria vida ao saber dos bilhetes que narravam os abusos que sofreu na infância.
Em conversa com a BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, a advogada destaca que “este é o maior julgamento contra um pedófilo em todo o mundo. Este caso será um marco não só pelo número de vítimas, mas também pela impunidade do médico durante mais de 30 anos, tanto na sua vida profissional como pessoal”.
“Le Scouarnec era um verdadeiro pervertido no seu aspecto psicológico; considerava as crianças à sua frente como objetos. Nunca demonstrou empatia pelo que acontecia, via eles como bonecos que usava para as suas necessidades sexuais. Só vivia para isso. Muitas destas pessoas sofreram imensos danos, tanto sexuais, pessoais como profissionais, incluindo depressão grave, disfunções sexuais, divórcios e separações”, acrescenta.
A mãe da menina de seis anos, cujo caso revelou a magnitude dos alegados abusos de Le Scouarnec, no primeiro julgamento contra o cirurgião
Getty Imaves via BBC
‘Nossa filha de seis anos derrubou o maior pedófilo da história’
Uma denúncia de seus vizinhos foi o que, em 2017, acabou por desvendar o sofisticado esquema do suposto pedófilo.
Os pais de uma menina de 6 anos acusaram o cirurgião de ter abusado sexualmente da filha através de uma espécie de cerca que separava as duas propriedades.
Essa acusação abriu um processo judicial no tribunal de Saintes, em Charente-Maritime, e se somou a dois casos de violação contra as suas sobrinhas, um entre os quatro e os cinco anos, ocorrido no final dos anos 80, e outro entre os quatro e os nove anos, ocorrido nos anos 90.
Um quarto caso que entrou nesse primeiro julgamento foi o de uma das suas pacientes, de quem o médico abusou em 1993, quando ela tinha quatro anos, conforme a Justiça francesa.
Durante a investigação, foram apreendidos 300 mil fotos e vídeos de pornografia infantil. Satta, que naquela ocasião representou os vizinhos de Le Scouarnec, afirma que também foram encontradas bonecas que ele teria usado como brinquedos sexuais.
“Nossa filha de seis anos derrubou o maior pedófilo da história”, disseram os pais da menina à imprensa local após o veredito.
Documentação contra Le Scouarnec inclui diários que o incriminam
Getty Images/BBC
Em 2020, após três anos de investigação e julgamento, Le Scouarnec foi condenado a 15 anos.
Uma vez descoberto o caso, chamou a atenção dos investigadores que uma pena anterior de quatro meses de prisão suspensa, que tinha recebido em 2005 por descarregar imagens de pornografia infantil, não alarmou os serviços hospitalares que mais tarde o contrataram.
Nenhum deles tomou medidas para impedir o contato com crianças. Isso levou o Ministério Público a abrir uma investigação paralela sobre o crime de omissão voluntária.
Uma das sobrinhas do médico disse à mídia em 2021 que seu tio era um “monstro” e que sua esposa tinha plena consciência das atrocidades que ele cometia. “Não era um tabu na família”, disse ele.
Foi no âmbito desse primeiro julgamento que as autoridades encontraram as suas notas e identificaram mais de 314 potenciais vítimas. Ao longo das décadas, Le Scouarnec acumulou dezenas de diários que acabariam por incriminá-lo.
“Esses escritos transcreviam numerosos atos de toque e penetração sexual cometidos quase diariamente, durante consultas pré ou pós-operatórias ou durante intervenções na sala de cirurgia, por vezes apresentados como atos médicos ou exames clínicos, especialmente quando eram realizados na presença de terceiros: seja o pessoal clínico ou os pais do paciente”, explicou o juiz de instrução em outubro de 2024, conforme publicado pelo Le Monde.
Aqueles que eram pacientes de Le Scouarnec na época e apareciam em suas anotações foram contatados, um por um, pela polícia.
A maioria deles, conforme relatado pela promotoria, soube assim que havia sofrido abusos. Segundo Satta, foram lidos fragmentos dos diários de Le Scouarnec para muitos deles, detalhando o que aconteceu.
‘Sempre senti algo sem saber explicar o que era’
Devido ao estado de sedação em que se encontravam, alguns não tinham lembranças, outros lembravam de alguns acontecimentos, mas não identificaram o que havia acontecido. Eles pensaram que era uma parte normal do procedimento médico.
A especialização de Le Scouarnec é em cirurgia do trato digestivo e outras vísceras.
Amélie Lévêque, uma das ex-pacientes de Le Scouarnec, cujo caso será julgado neste segundo julgamento, disse à imprensa local que tinha nove anos quando foi operada da apendicite e que após a cirurgia sofreu de distúrbios alimentares e depressão durante a adolescência e a idade adulta.
“Sempre senti algo sem saber explicar o que era”, disse ele em entrevista à TF1, uma rede de televisão francesa.
Juliette, outra das supostas vítimas, afirmou – sem ser identificada pelo sobrenome – que quando ela tinha sete anos, o cirurgião a operou de peritonite, mas que só quando os policiais a contataram é que ela descobriu sobre seus abusos. “Eles me explicam que meu nome aparece nos cadernos dele, que ele escreveu sobre mim.”
“A partir daí comecei a ler as três primeiras linhas. E de repente tudo me vem à cabeça, vejo alguém entrando no meu quarto, se aproximando de mim, perguntando como foi a noite, levantando o lençol, abrindo minhas pernas e me dizendo que vai ver se está tudo bem. Ele me estuprou, abusou de mim”, disse ela.
Segundo o juiz de instrução, nos vários interrogatórios a que foi sujeito, o ex-cirurgião admitiu ter sido “completamente invadido, durante 30 anos da sua vida, pela pedofilia”.
A advogada Francesca Satta com familiares de supostas vítimas de Le Scouarnec
Getty Images/BBC
De hospital em hospital
O cirurgião nasceu em Paris em 1950 e, segundo a mídia local, é filho de pai marceneiro e mãe dona de casa. Ele se formou em medicina pela Universidade de Nantes em 1985.
Durante esses anos, juntamente com a esposa, com quem teve 3 filhos, viveu em uma casa na comuna de Loches, na região de Touraine.
Segundo o que a Justiça conseguiu apurar, naquela época, Le Scouarnec havia abusado sexualmente das suas duas sobrinhas e de um dos seus pacientes de quatro anos num hospital da região.
Em 1994, começou a trabalhar na policlínica Sacré-Cœur em Vannes, onde atuou como cirurgião até 2004. Segundo a mídia local, a investigação do promotor estabeleceu que este era um dos centros de atendimento onde Le Scouarnec era mais ativo em seus esquemas de abuso sexual e estupro.
Nos anos seguintes ele teria feito o mesmo em outros quatro hospitais. Apesar da condenação em 2005, o médico foi contratado em 2008 no hospital Jonzac, onde trabalhou até 2017.
Devido ao longo período em que Le Scouarnec operou nestes centros de saúde, alguns dos seus alegados crimes já não podem ser processados. Das 314 vítimas inicialmente incluídas na investigação, 15 foram declaradas prescritas, na sequência de recurso da defesa.
Um julgamento extraordinário
O secretário-geral do Ministério Público de Rennes, Ronan Le Clerc, responsável pela coordenação do processo, explica em entrevista à BBC que a organização do julgamento demorou mais de dois anos.
A missão mais difícil, diz ele, foi encontrar um local para abrigar as cerca de 750 pessoas que deverão participar do processo. Chegou a pensar até mesmo em realizar o julgamento em um estádio.
Por fim, foi escolhida a antiga Faculdade de Direito de Vannes, situada a cerca de 300 metros do tribunal, onde já foram instaladas três salas. Uma com capacidade total de 456 cadeiras para as vítimas e seus familiares, outra para a imprensa e uma para o público em geral.
O julgamento foi classificado como extraordinário, o que permitiu maiores recursos do que a um procedimento tradicional. Estima-se que possa custar até 3,2 milhões de euros (cerca de R$ 19 milhões).
Embora o julgamento seja público, algumas vítimas solicitaram direito ao anonimato. Para respeitar a sua decisão, serão concedidos, por enquanto, oito dias de procedimento fechado.
Segundo a advogada Satta, não está descartado que durante este segundo processo judicial possam surgir novas denúncias contra Le Scouarnec.
Caso Gisèle Pelicot: francês que dopava a esposa para estupros é condenado
“É importante mencionar que houve um período de dois anos em que não foram encontrados diários, o que sugere haver mais vítimas que podem aparecer a qualquer momento”, sustenta.
Ela diz que, no primeiro julgamento, o cirurgião não demonstrou arrependimento.
“Ele explicou que se arrepende muito, sem necessariamente pedir desculpas. Ele sabe que o que fez é imperdoável”, disse seu advogado, Thibaut Kurzawa, naquela ocasião, segundo a AFP.
“Não estou pedindo perdão ou compaixão, apenas o direito de me tornar um homem melhor”, disse o cirurgião no julgamento de 2020.

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