Distrito de Venâncio Aires (RS) resistiu a inundações históricas de antes, mas foi arrasado pelas chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio de 2024. Novo Recomeço, único restaurante do local, carrega no nome o sentimento de quem resiste aos riscos de novas enchentes e quer continuar morando na região. Novo recomeço de Mariante: arrasada pelas enchentes, vila gaúcha tenta se reconstruir
Um restaurante inundado três vezes no intervalo de 1 ano reabriu e mudou o nome para Novo Recomeço, na Vila Mariante, distrito do município de Venâncio Aires (RS) que foi devastado pelas enchentes históricas de maio de 2024. As ruas, casas e comércios ficaram danificados ou foram completamente destruídos pela água.
O g1 esteve em Mariante, distante 130 km da capital Porto Alegre, logo após as enchentes atingirem a região, mostrou os impactos das inundações e o sofrimento das pessoas atingidas pela tragédia (relembre aqui). Sete meses depois, série de reportagens mostra a realidade da vila, dividida entre a destruição e o desafio de um novo recomeço.
Taís é uma das moradoras que resistiu e voltou a viver em Mariante. Ela ouviu o apelo dos vizinhos para assumir a propriedade do restaurante da família, que antes era tocado por sua mãe e irmão.
Reaberto no fim de agosto, o Novo Recomeço viu na mudança do nome uma forma de inspirar a reconstrução da vila centenária — e, com a redundância que se faz necessária, relembrar as outras vezes que Mariante foi destruída e se recompôs junto dos seus quase 5 mil moradores.
“A gente pensa em voltar a ser como a gente era”, diz Taís de Souza, de 34 anos, ao apostar na retomada do distrito. “Ver a vila cheia como era antes, ter as pessoas caminhando, ver mais alegria na vila porque está meio morta, sabe?”, diz .
Taís é dona do único restaurante de Mariante e investe na retomada da vila
Fábio Tito/g1
Enchente atrás de enchente
É a 3ª vez em pouco mais de um ano que os donos do estabelecimento tentam recomeçar. Todas aconteceram depois de o rio Taquari alagar toda a região.
Em setembro de 2023, o restaurante perdeu parte da sua estrutura e teve um prejuízo de R$ 20 mil. Dois meses depois, em novembro, a perda foi maior: R$ 50 mil. E o pior ainda estava por vir, com a enchente de 2024.
“A gente acorda olhando para o rio e pensa: ‘Bah! Que destruição que causou’. Mas ele não tem culpa porque é a natureza. A gente não tem culpa, a prefeitura não tem culpa, o Rio não tem culpa. Tu vai fazer o quê?” pergunta .
Restaurante fica a poucos metros do rio Taquari
Fábio Tito/g1
A água levou mesas, cadeiras, geladeiras, equipamentos e carros do estabelecimento. As dívidas foram se somando e só aumentam. Tais estima as perdas em maio acima de R$ 100 mil.
Auxílio com sacrifício
“A gente precisa de mais apoio, não abandonar como eles abandonaram”, lamenta Taís, ao falar de governos municipal, estadual e federal. Ela recebeu R$ 5,1 mil da União, valor que usou para comprar alguns móveis para o restaurante e para sua casa, que fica em cima do comércio.
Receber o valor foi um sacrifício, segundo ela. Foram idas e vindas até o centro de Venâncio Aires. “Na 7ª vez, eu fui direto na Prefeitura. Eles fizeram um mapeamento da casa com drone, e só aí eu recebi”, relembra.
Área interna do restaurante Novo Recomeço
Fábio Tito/g1
O auxílio não foi o bastante para reabrir o comércio, e foi preciso o apoio de outros moradores, que doaram os itens necessários para o funcionamento do local, como mesas, cadeiras, pratos, além da boa vontade dos fornecedores em prolongar os pagamentos.
A demora em liberar o auxílio não é a única reclamação de falta de apoio do poder público. A comerciante quer a volta do colégio e do posto de saúde. Hoje, o seu filho de 9 anos precisa pegar um ônibus e percorrer 10 km para ter aulas, e atendimentos de saúde são feitos em uma unidade móvel, que funciona duas vezes na semana.
Selfie service servido no restaurante Novo Recomeço, na Vila Mariante
Fábio Tito/g1
Taís reclama também do abandono da área. “Vocês podem ver que as ruas estão cheia de lixo. Tu quer, às vezes, passar em algum lugar ou entrar em algum… Tirar os entulhos, pelo menos, para a gente não ficar lembrando [da enchente]. Pelo menos uma limpeza básica”, pede.
O que diz a prefeitura
O prefeito Jarbas Rosa (PDT) disse ao g1 que o posto de saúde precisa de limpeza e pintura, que devem ser feitos até o início do ano para reabertura do local. Até lá, diz que o município oferece atendimento em uma unidade móvel que vai a Mariante duas vezes na semana.
Posto de saúde de Mariante precisa de reforma para ser reaberto. Estrutura não foi danificada pela enchente
Fábio Tito/g1
Em caso de emergência, os moradores precisam buscar atendimento em outro distrito do município, Estância, que fica a 10 km da vila. Sobre a escola, o prefeito diz que a unidade é estadual e a reabertura depende do governo de Eduardo Leite (PSDB).
“A escola hoje fica a 5 metros do rio e ela, do ponto de vista estrutural, não tem mais condições pela engenharia do governo do estado. Então, o governo do estado teria que construir uma nova escola em algum ponto de Vila Mariante, já que hoje todos os pontos são de inundação”, afirma.
Mapa mostra área de risco na Vila Mariante
Arte/g1
Sobre o abandono relatado pela empresária, o município diz que ofereceu máquinas para recolher o lixo e os entulhos da enchente, mas que para isso é preciso que os moradores limpem os terrenos e joguem os materiais na rua. Só assim, diz o prefeito, o município poderia atuar.
Escola estadual da Vila Mariante está abandonada
Fábio Tito/g1
O prefeito afirma que o município fez um mutirão para limpeza das casas de quem decidiu ficar em Mariante. Segundo ele, existe a possibilidade de os moradores reconstruírem os imóveis que já existiam na Vila Mariante, sem construir novos prédios.
“Nós temos uma questão de responsabilidade do gestor público que é com relação à reocupação das áreas. Nós temos a APP [Área de Preservação Permanente] que tem que ser cumprida. Grande parte dessas casas destruídas estavam em APP porque são construções que tinham 50, até 100 anos”, diz.
Estrutura que restou de uma casa levada pelo rio Taquari
Fábio Tito/g1
O que diz o governo estadual
Ao g1, o governo do Rio Grande do Sul afirmou que promoveu ações na região de Venâncio Aires “desde os primeiros dias da enchente”, com repasses que somam R$ 7,9 milhões em recursos para a cidade, entre benefícios sociais às famílias, apoio a empresas locais, reformas de hospitais, unidades de saúde, de educação e infraestrutura.
Sobre a escola localizada na vila, disse que ela não será reaberta. “A decisão é consequência dos danos severos causados pelos eventos meteorológicos extremos ocorridos neste ano e em razão de a estrutura do terreno escolar já ter sido fragilizada pelas enchentes de 2023, conforte atestam laudos científicos”, diz o governo, que afirma que os 120 estudantes da escola de Mariante foram acolhidos em outra unidade estadual.
Já a estrada que corta Mariante está entre as contempladas por planos de melhoria e de concessão à iniciativa privada. “O Governo do RS anunciou, recentemente, um investimento público de R$ 1,3 bilhão para as rodovias da região. O chamado Bloco 2 de concessão, o qual compreende, entre outras estradas, um trecho da ERS-130. Além disso, a concessionária que assumir a administração das rodovias por 30 anos deverá ampliar ainda mais os investimentos, promovendo as obras necessárias”, diz o governo.
Sobre o rio Taquari, a gestão do governador Eduardo Leite (PSDB) realizou retirada de automóveis que ficaram no rio após as enchentes e estuda como incluí-lo no Programa de Desassoreamento do RS. “O programa recebeu mais de 300 projetos de 145 municípios, entre eles Venâncio Aires. A classificação e a ordem de atendimento serão divulgadas em anúncio oficial do Governo do Estado, afirma o governo Leite.
“O governo do Estado realizou, em agosto de 2024, o rebaixamento do rio Taquari com o objetivo de realizar a análise do leito do curso hídrico e identificar possíveis pontos para o desassoreamento. A segunda etapa da ação ocorreu em outubro, com a retirada de veículos do leito do rio”, detalhou.
O que diz o governo federal
O governo federal, gerido por Lula (PT), afirmou que destinou até o dia 13 de dezembro mais de R$ 200 milhões em recursos para Venâncio Aires (RS), entre valores para o cuidado com as pessoas, apoio às empresas e medidas gerais para o município.
O governo Lula estima em R$ 58,5 bilhões o total de verbas destinadas para a reconstrução do Rio Grande do Sul após as enchentes de maio.
Interior de um veículo abandonado em Mariante
Fábio Tito/g1
Mato nascendo em uma casa da vila
Fábio Tito/g1