30 de outubro de 2024

O que é Destino Manifesto, doutrina que faz EUA se enxergarem como ‘nação escolhida’

Este conjunto de ideias começou a se desenvolver no século 19, mas suas raízes estão nos primórdios do período colonial. Uma mulher com uma túnica branca é o símbolo do ‘Destino Manifesto’, o símbolo da expansão americana rumo ao oeste
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“O Texas agora é nosso (…) Faz parte da designação cara e sagrada do nosso país”.
O ano era 1845 e o jornalista americano John O’Sullivan escreveu isso como parte de uma coluna intitulada Anexação.
Fazia apenas alguns dias que o Congresso da República do Texas – um país de vida muito curta, de 1836 a 1845 – havia aprovado a adesão aos Estados Unidos, e O’Sullivan comemorou a incorporação daquele vasto território como parte de um desígnio divino.
“Outras nações lançaram (…) interferências hostis contra nós, com o objetivo declarado de frustrar nossa política e obstruir nosso poder, limitando nossa grandeza e impedindo o cumprimento do nosso destino manifesto de nos espalharmos pelo continente que nos foi concedido pela Providência para o livre desenvolvimento de nossos milhões que se multiplicam anualmente”, completou O’Sullivan.
O Texas, que havia sido de domínio espanhol, e se tornou parte do México após a independência, estava sendo cada vez mais povoado por americanos que cruzavam a fronteira por incentivo do governo dos EUA.
Quando o México adotou uma reforma constitucional, deixando de ser um Estado federal para se tornar um Estado centralista em 1836, os texanos decidiram se tornar independentes pela força primeiro, e fazer parte dos EUA depois.
Esta não era a primeira vez que os EUA cresciam em área desde que as primeiras 13 colônias britânicas na costa leste da América do Norte declararam independência em 1776.
Mas O’Sullivan colocou em palavras o pensamento predominante nos EUA: eles tinham um destino manifesto concedido por Deus para expandir seu território.
E este destino manifesto era explicado por outro conceito fundamental enraizado naquela sociedade: a chamada “excepcionalidade americana”, a ideia de um povo superior aos outros, escolhido por Deus.
Esta convicção permaneceu no imaginário coletivo americano durante décadas – e se refletiu em inúmeras políticas promovidas por Washington.
O destino manifesto foi ilustrado em diversas obras de arte
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Essa doutrina está tão arraigada no pensamento americano que a atual candidata democrata à presidência, Kamala Harris, a expressou em seu discurso na Convenção Nacional do partido em agosto.
“Em nome de todos aqueles cuja história só poderia ser escrita na maior nação da Terra, aceito sua indicação para ser presidente dos Estados Unidos da América”, declarou a candidata.
Os republicanos também pensam assim. A primeira frase da sua plataforma de campanha eleitoral para 2024 diz: “A história da nossa nação está repleta de histórias de homens e mulheres corajosos que deram tudo o que tinham para fazer dos Estados Unidos a maior nação da história do mundo”.
E o germe deste pensamento remonta ao seu nascimento como país.
As raízes
“É um conjunto de ideias que começaram a se desenvolver no século 19 de maneira explícita, mas que têm sua origem há muito mais tempo, na época do início da colonização”, conta a historiadora mexicana Alicia Mayer à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
A formação das colônias britânicas na América ocorreu em meio a um grande confronto religioso na Europa.
Quando os primeiros colonos britânicos chegaram à América no início do século 17, menos de 100 anos haviam se passado desde que a Reforma Protestante na Europa dividiu a Igreja Católica.
Na Inglaterra, formou-se a Igreja Anglicana, e surgiu então a facção puritana, que entrava em conflito com a religião da Coroa.
Foi por esse motivo que muitos puritanos viram as colônias britânicas na América como um lugar ideal para se estabelecerem e viverem suas crenças sem restrições.
As ideias calvinistas, que são as raízes religiosas dos puritanos, incluíam a predestinação — Deus já havia decidido quem seria salvo e quem seria condenado antes de nascerem —, e que eles eram o povo escolhido.
Os colonos puritanos desembarcaram na América do Norte no início do século 17
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“O calvinismo tem a ideia da eleição de alguns indivíduos por Deus, que se estende à ideia da eleição de nações inteiras. Por outro lado, há aqueles que Deus elege para a condenação eterna, os réprobos”, explica Mayer, que tem doutorado em História e é pesquisadora da Universidade Nacional Autônoma do México.
“Há também nações inteiras de pessoas que são inferiores e, portanto, abandonadas por Deus”, acrescenta.
Se os puritanos podiam professar livremente sua religião na América, essa era a terra escolhida.
As terras dos povos indígenas
Em 1763, a Grã-Bretanha controlava todo o território americano, da costa atlântica até o Rio Mississippi.
Naquele ano, a Coroa britânica estabeleceu um limite para o avanço dos colonos: os Apalaches.
O Rei George III queria que as terras a oeste desta linha divisória e até o Rio Mississippi fossem deixadas para as comunidades indígenas, mas isso gerou indignação entre os recém-chegados à América, que queriam se expandir – e sentiam que tinham que fazer isso.
Esse foi um dos motivos pelos quais, anos depois, em 1776, 13 colônias declararam sua independência da Coroa britânica para formar os EUA.
O tamanho das 13 colônias era semelhante ao tamanho atual da Colômbia, oito vezes menor do que o território dos EUA hoje.
Os colonos britânicos foram conquistando cada vez mais territórios habitados por povos indígenas
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Os líderes da revolução, conhecidos como “Founding Fathers” ou “Pais Fundadores”, viam o país que estavam criando como o novo Reino de Israel, a terra escolhida por Deus para os seus fiéis.
“Nós, representantes dos Estados Unidos da América, reunidos no Congresso Geral, apelamos ao Juiz Supremo do mundo pela retidão das nossas intenções”, diz o documento de fundação.
A marca da nação escolhida por Deus foi rapidamente refletida no escudo nacional, denominado Grande Selo.
Para este emblema, Thomas Jefferson, principal autor da Declaração de Independência e um dos “Founding Fathers”, imaginou os americanos como “os filhos de Israel no deserto”.
Benjamin Franklin, que também estava entre os fundadores dos EUA, sugeriu que deveria ter “Moisés levantando seu cajado e abrindo o Mar Vermelho, e o faraó, em sua carruagem, sendo inundado pelas águas”. Uma cena que recriava a passagem bíblica dos israelitas sendo perseguidos pelos egípcios.
Por fim, optou-se por outra alternativa, também carregada de simbolismo.
O escudo, ou brasão de armas, “surge no peito de uma águia americana sem nenhum outro suporte para indicar que os Estados Unidos da América devem confiar em sua própria virtude”, explicou Charles Thomson, que criou o design final, em seu relatório original.
No outro lado do selo, há uma pirâmide. “O olho sobre ela e o lema fazem alusão às muitas e importantes intervenções da Providência em favor da causa americana.”
Versão original do Grande Selo dos Estados Unidos
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A grande compra
A expansão continuou em 1803.
Os EUA estavam interessados ​​em manter Nova Orleans, cidade controlada pela França, porque seu porto era estratégico para o comércio, por isso se ofereceram para comprar o território dos franceses.
O cônsul francês da época, Napoleão Bonaparte, fez uma contraproposta: vender para eles toda a Louisiana, que na época se estendia do Rio Mississippi até as Montanhas Rochosas, e do Golfo do México até a fronteira com o Canadá.
Napoleão queria se livrar desse território — e, para os EUA, isso significava dobrar o tamanho do país.
Jefferson, então presidente, foi seduzido por essa oportunidade expansionista, endividou-se e comprou a Louisiana.
E a intenção era continuar até chegar ao Oceano Pacífico.
“Era a noção de From sea to shining sea, de costa a costa”, explica Mayer.
Duas décadas depois, a ideia avançou para a independência de todo o continente do domínio europeu, quando o presidente James Monroe fez um discurso perante o Congresso no qual alertou os países do Velho Continente que qualquer intervenção na América seria considerada uma agressão direta aos EUA, e que eles agiriam de acordo com isso.
“Como princípio em que estão em jogo os direitos e interesses dos Estados Unidos, os continentes americanos, devido às condições de liberdade e independência que assumiram e mantêm, não devem ser considerados, de agora em diante, como sujeitos à futura colonização por qualquer potência europeia”, disse Monroe.
Mayer parafraseia esta concepção da seguinte forma: “O nosso destino é nos expandir para ensinar a todos os americanos que as nossas instituições republicanas são melhores do que as monarquias da Europa”.
Essa é a chamada Doutrina Monroe, que também explica a política expansionista e a subsequente proteção dos interesses econômicos dos EUA na América.
A historiadora mexicana destaca que havia também “uma separação ideológica, religiosa e cultural entre os Estados Unidos e as colônias hispânicas”, em que os protestantes abominavam o catolicismo imposto pelos espanhóis e queriam que sua maneira de ver o mundo prevalecesse.
A ideia de nação
Gravura da conquista do Novo México, na qual o general Stephen Kearny é visto proclamando o território como parte dos EUA
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Nos EUA, especialmente na Nova Inglaterra e nos Estados do Meio-Atlântico, o nacionalismo se tornou mais pronunciado entre 1820 e 1840.
“Há um projeto nacional que envolve expansão, e quem se opõe à expansão, por definição, não é um bom e verdadeiro americano”, explica o historiador sueco Anders Stephanson à BBC News Mundo.
As décadas de 1830 e 1840 foram uma época de ressurgência religiosa “muito fortemente protestante, com ênfase na seleção, na escolha dos eleitos”, ele observa.
“Os propósitos divinos serão realizados em um sentido político, e a essência desse processo é a apropriação de cada vez mais terras no continente norte-americano”, diz Stephanson, professor de história na Universidade de Columbia, nos EUA, e autor do livro Manifest Destiny: American Expansion and the Empire of Right (“Destino Manifesto: A Expansão Americana e o Império de Direito”, em tradução livre).
“Isso não teria acontecido se não tivesse havido aquela ressurgência religiosa”, destaca.
As eleições de 1844
O Texas era uma república independente desde 1836, quando se separou do México.
Oito anos depois, uma eleição presidencial acirrada foi realizada nos EUA entre o Partido Democrata e o extinto Partido Whig. E a questão do Texas foi fundamental.
O democrata James Polk não era o favorito do seu partido, mas graças às suas ideias expansionistas obteve o apoio do ex-presidente Andrew Jackson — que havia liderado as conquistas dos territórios indígenas —, e venceu assim a eleição interna.
Ao mesmo tempo, os texanos, que haviam se tornado, em sua maioria, colonos e descendentes de colonos britânicos, também queriam se unir aos EUA.
Depois de conquistar a presidência, Polk negociou, e anexou o Texas. Mas ele queria mais.
O jornalista John O’Sullivan descreveu da seguinte maneira:
“O Texas foi absorvido pela União no cumprimento inevitável da lei geral que está deslocando nossa população para o oeste; a conexão disso com essa taxa de crescimento populacional que está destinada, dentro de 100 anos, a aumentar nossos números para a enorme população de 250 milhões (se não mais), é evidente demais para nos deixar em dúvida sobre o desígnio manifesto da Providência em relação à ocupação deste continente.”
“Imbecil e distraído, o México nunca poderá exercer qualquer autoridade governamental real sobre” a Califórnia, acrescentou.
Um desígnio controverso
No início, o destino manifesto “não era uma ideologia política consensual, mas um grito partidário de uma corrente específica dentro do Partido Democrata”, explica o historiador americano Jay Sexton à BBC News Mundo.
“Na década de 1850, se tornou um termo mais utilizado, e era normalmente usado de forma pejorativa por aqueles que se opunham à expansão imperial dos EUA”, acrescenta.
Com o Texas anexado, uma disputa entre os EUA e o México sobre a fronteira entre os dois países foi a desculpa para Polk declarar guerra ao país vizinho, que na época vivia uma grande instabilidade política.
“A guerra contra o México é uma questão incrivelmente controversa na política americana e nas eleições de meio de mandato de 1846”, lembra Sexton, que é professor de História na Universidade do Missouri, nos EUA, e autor do livro Monroe Doctrine: Empire and Nation in Nineteenth-Century America (“A Doutrina Monroe: Império e Nação nos EUA do século 19”, em tradução livre).
“E há também o grande debate sobre qual parte do México deve ser tomada”, acrescenta.
Segundo o historiador americano, o presidente democrata acreditava que eles tinham que tomar a Califórnia — do contrário, os britânicos ou franceses a tomariam. “Temos que fazer isso primeiro”, era seu pensamento.
A guerra (ou invasão) do México
Terceiro dia do cerco de Monterrey, em 23 de setembro de 1846
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A guerra começou em 1846, e o ​​avanço das tropas americanas era imbatível.
“Polk percorreu todo o México”, diz Mayer.
O México havia sido devastado pela guerra de independência, e não tinha o poderio militar americano.
Stephanson observa que, em 1824, os EUA e o México tinham aproximadamente o mesmo tamanho, e a população do primeiro era pouco maior que a do segundo.
Mas em 1850, os EUA tinham 23 milhões de habitantes, e o México apenas 7,5 milhões.
O México acabou humilhado com a bandeira dos EUA hasteada na praça principal da capital, conhecida como Zócalo, em 14 de setembro de 1847.
“A negociação das fronteiras foi muito complicada, e o enviado de Polk, Nicholas Trist, foi o salvador do México, porque assinou o Tratado de Guadalupe Hidalgo sem a autorização de Polk”, diz Mayer.
De qualquer forma, havia pressão nos EUA para não assumirem todo o território mexicano, onde falavam de miscigenação de forma muito depreciativa.
“O México era visto como uma nação de gente inferior — uma ideia discriminatória que faz parte das raízes ideológicas americanas —, e havia políticos que preferiam não anexar o país inteiro porque isso geraria problemas raciais”, lembra a historiadora.
“Para os americanos, as misturas raciais que haviam ocorrido nas colônias do império hispânico eram aberrações. Parte do destino manifesto é a exaltação da raça branca anglo-saxônica”, acrescenta.
“Deus favorecia os protestantes de língua inglesa, tomando terras da Igreja Católica, abrindo novos mercados e novos territórios para a produção agrícola e o comércio”, explica Sexton.
“Novos territórios para assentamento, nova expansão do protestantismo, como nós vemos, é imperialismo. Eles veem isso como o auge do liberalismo vitoriano”, argumenta o especialista.
Uma doutrina ampliada ao longo do tempo
A visão expansionista dos governos evoluiu a partir dos “Founding Fathers”.
“Há uma verdadeira progressão do expansionismo de Jefferson para Jackson, e depois para Polk. Jefferson começa com a remoção dos índios, mas depois Jackson acelera esse processo. E mais tarde, é claro, Polk, ao tomar o sudoeste, coloca tudo isso em velocidade máxima”, diz Sexton.
Stephanson acrescenta: “Embora existam diferenças, a ideia é que o compromisso fundamental com a expansão que os EUA incorporaram é bom por natureza”.
O destino manifesto continuou presente no século 20, não mais necessariamente expandindo seu território, mas controlando — ou tentando controlar — o mundo por meio da política externa e da economia.
O historiador sueco lembrou que este destino manifesto, ressignificado, chegou ao século 21 com George W. Bush e Barack Obama e suas guerras e incursões militares.
A conselheira de segurança de Bush, por exemplo, defendeu a guerra dos EUA contra o Iraque em 2002 com base no fato de que o país tem o “direito à legítima autodefesa antecipada”, como visto “desde a crise dos mísseis cubanos em 1962, até a crise (nuclear) na península coreana em 1994”.
“Como disse o presidente, temos a responsabilidade de construir um mundo que não seja apenas mais seguro, mas melhor”, observou.
“Sempre que há uma crise surge a evocação de um destino manifesto e sólido. Nada é mais voltado para o destino do que a ideia, sempre apresentada em ocasiões importantes, de que os EUA são a nação indispensável”, afirma Stephanson.
“É a convicção histórica do mundo de que o que os EUA fazem ou deixam de fazer é decisivo para o futuro da humanidade. E isso é um pensamento voltado para o destino”, conclui.

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