31 de janeiro de 2025

O que ratos adormecidos revelam sobre como nossa memória funciona


Cientistas descobriram que o cérebro do camundongo trabalha em tarefas diferentes em cada fase do sono. Além disso, o estudo trata de como o sono pode ajudar os humanos a armazenar melhor as memórias. O que um rato de laboratório consegue ou não lembrar pode dar pistas sobre como processamos e reforçamos memórias.
Getty Images via BBC
O que é memória, e quanta memória nós temos? Quando esquecemos algo, é porque uma nova memória “substituiu” uma memória existente ou estabelecida?
O personagem de animação Homer Simpson, da série de televisão americana Os Simpsons, certamente acreditava nisso.
“Toda vez que aprendo algo novo, isso empurra algumas coisas antigas para fora do meu cérebro”, ele diz à sua esposa, Marge, em um episódio particularmente memorável. “Lembra quando fiz aquele curso de fabricação de vinho caseiro, e esqueci como dirigir?”
Mas os instintos de Homer não estão tão distantes da realidade quanto poderíamos imaginar. Existe um fenômeno conhecido como “esquecimento catastrófico”, no qual o processo de consolidação de novas informações interfere ou “apaga” a memória existente.
Algo semelhante pode ser observado nas redes neurais digitais que alimentam a inteligência artificial (IA), que são modeladas com base no cérebro humano, mas que muitas vezes têm dificuldade de incorporar novos conjuntos de dados ao aprendizado existente.
Normalmente, nossos cérebros são melhores nisso, mas não entendemos bem por quê.
Pesquisadores da Universidade Cornell, nos EUA, acreditam ter feito um grande avanço na compreensão de como nosso cérebro gera memórias — e afirmam que suas descobertas vão poder ser usadas um dia não apenas para aprimorar a inteligência artificial, mas também para combater doenças degenerativas do cérebro, como o Alzheimer.
Tudo isso se resume ao que eles conseguiram ver pelos olhos de camundongos adormecidos.
Janela para o cérebro
A equipe, cujo artigo de pesquisa foi publicado no início deste mês na revista científica Nature, descobriu que os camundongos parecem evitar a interferência ao processar memórias novas e estabelecidas em diferentes estágios do ciclo do sono.
“É a primeira vez que sabemos algo tão específico quanto o tipo de memória que o cérebro está consolidando ao olhar para os olhos”, disse a principal autora do estudo, Azahara Oliva, à BBC.
Os camundongos são sujeitos ideais para este tipo de experimento porque, durante parte do tempo em que estão dormindo, seus olhos ficam parcialmente abertos, o que oferece aos cientistas uma janela para o cérebro.
Quando os camundongos dormem, suas pupilas encolhem repetidamente por cerca de um minuto, e depois voltam ao tamanho original maior.
O que os cientistas descobriram foi que o cérebro do camundongo estava trabalhando em tarefas diferentes em cada fase do sono.
Quando as pupilas estão grandes, o cérebro está preservando memórias mais antigas, explica Oliva, e está incorporando novas memórias quando as pupilas estão pequenas. A equipe acredita que este sistema de duas fases é uma “possível solução para este problema de como o cérebro pode incorporar novos conhecimentos, mas também manter intacto o conhecimento antigo”.
Camundongos transgenicamente modificados
Estas percepções são possíveis porque os camundongos marrons usados nos experimentos (que são considerados mais inteligentes do que os brancos) têm neurônios (células cerebrais) geneticamente modificados que respondem à luz.
“Os próprios camundongos são modificados transgenicamente, de modo que expressam uma proteína artificial em suas células cerebrais”, diz o principal coautor do artigo, Antonio Fernandez Ruiz.
“Quando inserimos uma fibra óptica no cérebro, com uma quantidade muito pequena de luz, podemos fazer com que esses neurônios disparem — podemos ativar, como quiser, células específicas no cérebro”, diz Hongyu Chang, que também é coautora do estudo. Isso permite que os pesquisadores acionem ou suprimam o processo de consolidação da memória usando equipamentos especiais projetados pela equipe.
Os camundongos do experimento usam um capacete para que sua pupila possa ser monitorada por uma câmera por meio de um espelho, e os eletrodos possam alcançar o cérebro.
Universidade Cornell via BBC
Os camundongos usam um capacete especial com uma câmera e um espelho, para que os cientistas possam observar a pupila e saber em que estado do sono o camundongo se encontra. Assim, o cérebro pode ser estimulado somente no período necessário, quando a pupila está grande ou pequena.
Pequenos eletrodos implantados no cérebro permitem que os cientistas observem o processamento cerebral do camundongo e interrompam sua capacidade de formar memórias.
O estudo de centenas de neurônios específicos informa aos cientistas em que ordem eles estão disparando e, se essa ordem corresponder à ordem da experiência anterior, isso sugere que o camundongo adormecido pode estar revendo um evento anterior e formando ou consolidando uma memória.
“Quando ando por uma sala, alguns neurônios disparam em uma ordem específica e, à noite, as mesmas células são reativadas novamente na mesma ordem para consolidar e estabilizar essas memórias”, explica Chang.
Mas o disparo de uma pequena quantidade de luz por meio de uma fibra óptica no neurônio geneticamente modificado do camundongo adormecido interrompe este processo.
Apagando a memória de um camundongo
Foram escondidas guloseimas para os camundongos, que tiveram que se lembrar do caminho certo depois de dormir.
Getty Images via BBC
“Colocamos o animal em um labirinto de tábuas de queijo – uma forma redonda com vários buracos”, diz Wenbo Tang, coautora do relatório. “E um dos buracos tem esta recompensa escondida, que é açúcar.”
Os camundongos aprendem então um caminho até o doce, e os cientistas mapeiam o padrão em que os neurônios disparam.
Ao estabelecer um segundo caminho diferente, eles podem diferenciar entre uma memória antiga estabelecida e uma formada naquele dia.
A equipe começou então a ver se conseguiria apagar memórias seletivas.
A equipe descobriu que, quando suprimiu os neurônios formadores de memória, na fase da pupila pequena do sono, de camundongos que tinham acabado de aprender a encontrar a guloseima, eles não conseguiram encontrar a guloseima novamente quando acordaram.
No entanto, quando eles fizeram isso durante a fase da pupila mais dilatada do sono, os camundongos foram direto para a guloseima. Eles conseguiram se lembrar do caminho, indicando que o processo de formação da memória durante o sono não havia sido interrompido.
Os cientistas conseguiram monitorar a atividade cerebral e sabiam, portanto, que a maior parte da reprodução de experiências recentes pelo cérebro estava ocorrendo quando a pupila estava pequena. Com base em experimentos anteriores, eles acreditam que o outro estágio do sono, com a pupila maior, tem uma função diferente: reforçar as memórias existentes.
Isso levou a equipe a concluir que, pelo menos nos camundongos, o cérebro separa as duas tarefas de processamento de novas memórias e consolidação das existentes, o que provavelmente impede que elas interfiram uma na outra.
Ajuda com Alzheimer, trauma e inteligência artificial
Acredita-se que as descobertas do estudo com ratos também sejam relevantes para os seres humanos.
Getty Images via BBC
Sabemos como o sono é importante para o processo de formação da memória, e este estudo sugere que o que acontece no cérebro durante as diferentes fases é importante para evitar problemas com a criação e o estabelecimento de memórias.
A equipe acredita que, assim como em muitos outros casos, suas descobertas em camundongos também vão ser relevantes para os seres humanos: os camundongos também são mamíferos e compartilham muitas semelhanças genéticas e processos biológicos com os seres humanos, assim como desafios e necessidades ambientais.
Se pudermos ajudar o cérebro humano a evitar a confusão entre memórias existentes e novas, podemos encontrar maneiras de tratar várias condições.”
“Achamos que é isso que está acontecendo com o envelhecimento natural, e talvez com doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer”, diz Fernandez Ruiz
“Você pode ter uma memória que deseja apagar especificamente, como no caso de pessoas que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) ou de tipos de memória prejudiciais”, acrescenta Oliva. Ela sugere que, no futuro, poderemos interferir no sono durante a consolidação desta memória ou experiência traumática específica.
A pesquisa também poderia ajudar a inteligência artificial a aprender muitas tarefas semelhantes, da mesma forma que o cérebro humano faz.
“Quando você pede a um sistema de inteligência artificial para fazer uma coisa, ele pode fazê-la muito bem, até mesmo superando os seres humanos. Mas quando você pede ao nosso sistema de IA para fazer muitas coisas, isso é um desafio”, diz Tang.
“Se eu treinar uma nova rede neural artificial para reconhecer uma imagem — um gato, por exemplo —, ela vai ser incrível”, acrescenta Hongyu Chang.
“Mas e se eu quiser que ela aprenda uma coisa nova, por exemplo, (identificar) um cachorro? Você vai ter que treiná-la novamente, porque este novo conjunto de dados vai sobrescrever o antigo. Ela vai se lembrar do cachorro, mas vai esquecer o gato. Uma das aplicações deste campo é que poderia haver uma maneira de a IA aprender coisas novas mais rapidamente.”
De modo geral, diz Tang, “este estudo trata de como o sono pode nos ajudar a armazenar melhor as memórias”, e isso poderia ajudar a melhorar a saúde humana.
Mas, talvez, não ajude Homer Simpson, cuja incapacidade de dirigir depois de um curso de fabricação de vinho teve pouco a ver com as fases do sono.
“É porque você estava bêbado”, explica Marge.

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