16 de novembro de 2024

‘Ouço vozes falando em língua que não entendo’: o jovem colombiano premiado por relato sobre transtorno esquizoafetivo

Jovem colombiano conta à BBC sua experiência com transtorno esquizoafetivo: uma condição mental que compartilha sintomas de esquizofrenia com transtornos afetivos. Michael Vargas Arango tem 22 anos de idade. Ele foi diagnosticado com transtorno esquizoafetivo do tipo misto e transtorno de personalidade emocionalmente instável
Michel Vargas Arango via BBC
Miguel Vargas Arango conta que, desde que se conhece por gente, sente “presenças estranhas” quando entra em determinados locais ou está ao lado de certas pessoas.
“Muita gente começou a dizer que eu tinha um dom porque, para mim, certas pessoas e certos locais produzem em mim certas energias malucas, muito loucas”, conta à BBC News Mundo – o serviço em espanhol da BBC – o jovem colombiano de 22 anos, estudante de psicologia em Miami, nos Estados Unidos.
Mas o que, para os mais fervorosos ao seu redor, parecia ser um presente divino foi se transformando, pouco a pouco, em um pesadelo.
“Quando sofria um revés emocional, eu começava a sentir como se houvesse uma presença, sentia como se alguém estivesse me apunhalando pelas costas, algo muito difícil de explicar”, ele conta.
No seu momento mais grave, este pesadelo o levou a tentar acabar com a própria vida. “Tomei um frasco de comprimidos e estou vivo porque consegui vomitar, na verdade.”
O diagnóstico de Michael é uma bomba em dose dupla: transtorno esquizoafetivo – uma condição mental que mistura sintomas da esquizofrenia, como alucinações e delírios, com sintomas de transtornos de estado de ânimo, como a depressão e as manias – e transtorno de personalidade emocionalmente instável.
Hoje, com mais compreensão da sua própria mente e motivado a ajudar os outros, Michael conta que deseja derrubar os estigmas ainda mantidos pela sociedade frente aos transtornos mentais e termos como “esquizofrenia”.
Estes estigmas, em casos como o dele, podem ser tão ou mais prejudiciais do que os próprios transtornos.
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Felipe?
Michael conta que sua infância foi muito solitária.
Ele jogava “rapa tudo” com sua mãe, enquanto olhava do terraço os meninos correndo atrás da bola pelas ruas. A família morava naquele que chegou a ser o bairro mais violento da Colômbia, a Comuna 13 de Medellín.
Foi naqueles primeiros anos que a mãe do jovem começou a perceber que ele tinha algo fora do normal.
“Ela conta que me via, por exemplo, nas escadas de casa jogando xadrez sozinho, jogando Xbox sozinho”, relembra ele.
A questão é que, para Michael, ele não passou sozinho muitos desses momentos, mas com seu amigo Felipe, de quem afirma ter lembranças muito claras.
“Eu me lembro dele!”, conta Michael. “Eu lembro que ele usava sempre a mesma roupa. Ou seja, eu não me lembro de ter jogado xadrez sozinho.”
Preocupada e acreditando que se tratasse de um contato com o além, a mãe de Michael, católica devota, levou seu filho para visitar o padre “para ver como era aquilo, se o moleque estava possuído, se estava falando com gente morta ou o que estava acontecendo”.
À medida que Michael crescia, estas histórias continuavam alimentando a ideia de que o jovem teria um dom.
Dividindo a mente
A vida de Michael tomou um rumo radicalmente diferente, tanto em qualidade de vida quanto geograficamente, quando sua família se mudou para o município de Envigado, no lado oposto da região metropolitana de Medellín, na Colômbia.
“Em Envigado, pude jogar futebol pela primeira vez com os moleques do bairro”, relembra Michael sobre os tempos passados naquele município. “Eu estava na natação, no tênis de mesa (um dos [esportes em] que me saí melhor), tênis de quadra, patinação, uma porção de coisas.”
Foi naquela fase que Michael começou a observar com mais clareza as “sensações negativas” que percebia em certas ocasiões e com determinadas pessoas. Além disso, ele começou a notar que essas sensações eram muito piores quando ele passava por emoções fortes.
“Eu me sentia fisicamente doente por estar em certos lugares”, ele conta. “E, quando tinha um revés emocional, eu sentia como se aquela presença estivesse me apunhalando pelas costas.”
Michael também conta que começou a notar uma estranha dissonância entre o que ele acreditava que fazia e o que a realidade lhe mostrava.
“Começaram a acontecer coisas que me fizeram duvidar muito da minha memória”, ele conta.
“Eu tinha muitas lembranças que sentia que não me pertenciam. Eu sentia como se estivesse dividindo o quarto na minha mente, como se eu não fosse a única pessoa que conduzia meu corpo.”
Michael conta que começou a observar que, em alguns momentos, ele agia como alguém alheio a si próprio. Ele observava o telefone celular e via conversas dele com outras pessoas, das quais não tinha nenhuma recordação.
“Eu nunca defendi a posição de que ‘eu bebo e, por isso, não me lembro do que fiz’. Mas, para definir em poucas palavras, é como supostamente as pessoas se sentem quando bebem e não se lembram do que fizeram, mas em total sobriedade.”
Fundo do poço
Para Michael, as alucinações típicas do seu distúrbio esquizoafetivo costumam ser mais auditivas do que visuais. Elas se manifestam quando ele atravessa períodos de alta tensão ou estresse.
Ele conta que ouve vozes, muitas vezes dizendo seu nome. Michael se lembra de uma voz específica, de um ancião ou anciã.
Mas ele afirma que, em 90% do tempo, não consegue entender o que eles dizem.
“Esta também é outra coisa que ajudou a fazer com que as pessoas (e até eu mesmo) acreditassem que eu teria um dom: eu escuto como se vocês me falassem em um idioma que eu não entendo. Às vezes, digo que estão falando comigo como se fosse em hebraico.”
Mas o que talvez parecesse mais estranho, considerando que as alucinações ocorrem em situações de forte estresse, é que Michael conta que as vozes se mantiveram em total silêncio quando ele tentou se suicidar, há alguns anos.
“Realmente, naquele momento, as vozes não estavam ali”, relembra ele. “Isso faz parte da crença de que as vozes estão sempre dizendo ‘faça isto’ ou ‘machuque esta pessoa’. Deve haver casos, mas o meu não é assim.”
De fato, ele conta que, por trás da decisão radical de acabar com a vida, havia um motivo “verdadeiro”.
“A ideia veio por pensar que eu estava louco e dizer ‘uma pessoa assim não pode contribuir em nada para a sociedade’ ou ‘credo, a única coisa que posso fazer é causar dano’. Eu então tomei um frasco de comprimidos e estou vivo porque consegui vomitar, na verdade.”
Tentando entender
Para Michael, chegar ao fundo do poço foi uma bênção. Foi aquele episódio que o levou a procurar ajuda psiquiátrica.
Michael explica que sempre teve acompanhamento psicológico, mas seu transtorno nunca havia sido diagnosticado. Agora, ele podia finalmente dar um nome ao que o afligia: transtorno esquizoafetivo do tipo misto e transtorno de personalidade emocionalmente instável.
“Quando fiquei sabendo que tenho isso, eu disse, ‘bem, e agora, eu faço o quê?'”
“Ou seja, eu vivi toda a minha vida com esta ideia de que essas pessoas são loucas, perigosas e agora eu sou um deles”, relembra ele. “Mas é aí que você começa a ler e aprender.”
Michael descobriu, por exemplo, que é muito provável que a esquizofrenia seja de origem hereditária. Alguns estimam essa probabilidade em 80%, o que esclareceu um pouco sobre o passado da sua família.
“Comecei a contar ao meu psiquiatra sobre meu histórico familiar e descobrimos, por exemplo, que meu avô era uma pessoa muito desequilibrada”, relembra ele.
“Segundo contam meu pai e minha avó, ele era uma pessoa muito explosiva que, quando sentia que ia ter ‘a raiva’, como ele chamava, ele os trancava em um cômodo e ia embora, como se tentasse protegê-los.”
“E, de fato, meu avô acabou fugindo de um hospital psiquiátrico e desapareceu. Existe um registro de entrada, mas não o de saída”, conta Michael.
Seu diagnóstico também ensinou que, apesar do componente genético da doença, geralmente existe um fator ambiental que a desencadeia.
Michael não tem certeza, mas acredita que o abuso sexual que sofreu quando pequeno por um membro da sua família ampliada pode ter influenciado o desenvolvimento da sua condição.
“A pessoa que me fez aquilo foi assassinada há dois anos, antes que eu viesse para os Estados Unidos”, ele conta.
“Eu me lembro de sentir uma felicidade tão incrível que achei que estava definitivamente louco. Em outras palavras, aquela pessoa abusou de você, mas continua sendo uma pessoa. Como você pode sentir alegria por algo assim?”
Como explicar?
Com seu diagnóstico, Michael aprendeu a levar uma vida bastante normal. Ele estuda na cidade de Miami e mantém um relacionamento amoroso com uma pessoa que cuida dele e o entende.
Foi exatamente uma conversa com ela que o levou a criar uma forma de fazer com que as pessoas sintam algo parecido com a sua condição.
“Ela me disse que não queria que contasse aos seus amigos sobre a minha condição”, segundo ele. “E não é porque ela não queria que eles soubessem, mas para que eles me conhecessem primeiro e soubessem quem eu sou.”
“Claro que ela disse aquilo apenas por amor, por proteção, mas, para mim, foi um golpe no ego.”
Naquela época, o Miami Dade College, onde Michael estuda, incentivou os alunos a atender a um convite da rádio pública americana NPR para produzir podcasts curtos. Aquela foi a oportunidade perfeita para Michael.
“Eu disse ‘vou então mostrar a eles o que é e vou contar o meu caso’.”
Uma vitória
O testemunho de Michael durou oito minutos. Ele foi publicado em inglês com o título The Monsters We Create (“Os monstros que criamos”, em tradução livre) e ganhou o prêmio de melhor trabalho no Desafio de Podcasts da NPR, que reuniu 500 estudantes das melhores universidades norte-americanas.
O programa começa com um complexo jogo de vozes fantasmagóricas, que entram e interrompem ocasionalmente a narração, de forma similar à descrita por Michael quando suas vozes se manifestam.
No podcast, Michael expõe diretamente os preconceitos existentes sobre a esquizofrenia na comunidade universitária.
“Perguntei às pessoas como elas reagiriam se alguém perto delas tivesse esquizofrenia”, ele conta. “Enquanto alguns respondem ‘não me importaria enquanto aquela pessoa não estivesse prejudicando ninguém’, outros dizem que chamariam a emergência.”
Agora, Michael afirma que continua dedicado a desfazer as ideias negativas sobre as pessoas que, como ele, sofrem de condições mentais – incluindo algumas ideias dele próprio.
“A mensagem que eu realmente tento transmitir é que todas as pessoas vivem com alguma coisa, todas as pessoas têm problemas e todas as pessoas têm alguma coisa”, destaca ele.
“Mas, mesmo assim, você é uma pessoa que pode conquistar muitas coisas, que não pode se deixar cair pelo que as pessoas pensam de você. Porque, muitas vezes, alguém com uma condição é muito mais capaz do que alguém que não tem nada que o aflija.
Caso você seja ou conheça alguém que apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio, ou caso você tenha perdido uma pessoa querida para o suicídio, confira alguns locais para pedir ajuda:
– O Centro de Valorização da Vida (CVV), por meio do telefone 188, oferece atendimento gratuito 24h por dia; há também a opção de conversa por chat, e-mail e busca por postos de atendimento em todo o Brasil;
– Para jovens de 13 a 24 anos, a Unicef oferece também o chat Pode Falar;
– Em casos de emergência, outra recomendação de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);
– Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone 192;
– Na rede pública local, é possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) 24h;
– Confira também o Mapa da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento em saúde mental gratuito em todo o Brasil.
– Para aqueles que perderam alguém para o suicídio, a Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por Suicídio (Abrases) oferece assistência e grupos de apoio.
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