Releitura de hit do grupo Molejo e faixas com Luísa Sonza e Martinho da Vila valorizam álbum escorado no culto ao samba da década de 1990 e sem emoção real no canto das músicas mais sentimentais. Capa do álbum ‘Pagode de Mart’nália’, de Mart’nália
Arte de Vik Muniz sobre foto de Nil Caniné
♫ OPINIÃO SOBRE DISCO
Título: Pagode da Mart’nália
Artista: Mart’nália
Cotação: ★ ★ ★
♪ Mart’nália é do tipo raro de artista que fala o que pensa quando conversa com jornalistas. Nas entrevistas que vem dando para promover o álbum Pagode da Mart’nália, a filha de Martinho da Vila deixa claro que nunca gostou da vertente pop romântica do samba que irrompeu na década de 1990 com arranjos calcados mais nos teclados do que nas percussões.
Com o álbum, a cantora, compositora e ritmista carioca entra na onda do culto ao pagode dos anos 1990 que vem rendendo shows, discos e até curso (programado pelo Sesc São Paulo para começar em 26 de novembro).
No mundo desde às 21h de ontem, 13 de novembro, com bela capa de Vik Muniz, o álbum Pagode da Mart’nália é ideia da empresária da artista, Márcia Alvarez, que assina a direção artística do disco com Marcus Preto. De início, a cantora rejeitou a ideia, mas acabou cedendo.
O resultado é álbum que oscila, não por conta da excelência da produção musical do pianista Luiz Otávio, mas porque Mart’nália nunca foi cantora vocacionada para dar voz ao trivial chororô romântico de pagodes como Sem o teu calor (Péricles, Chrigor e Isaias Marcelo, 1997) e Derê (Ademir Fogaça, 1997), músicas menos inspiradas dos repertórios dos grupos Exaltasamba e Soweto, respectivamente.
Falta no canto de Mart’nália a emoção real exigida por versos doídos. A ausência de sintonia entre música e intérprete também fica evidente no canto de Que se chama amor (José Fernando, 1993), ainda que um fraseado soul dê toque diferente ao sucesso do grupo Só pra Contrariar.
Em contrapartida, a cantora dá show quando canta Clínica geral (Pedrinho da Flor e Anderson Leonardo, 1996), swingueira do grupo Molejo. É quando Mart’nália dá baile e canta pagode do jeito dela.
Nessa linha com molejo, cabe também destacar o dueto com Luísa Sonza em Cheia de manias (Luiz Carlos, 1992). A participação de Sonza pode até ser midiática, e não se pode esquecer que o álbum Pagode da Mart’nália marca a estreia da sambista na Sony Music, gravadora multinacional que naturalmente alimenta expectativas comerciais quanto ao desempenho do disco.
Seja como for, o fato é que Luíza Sonza se ambienta bem no pagode de Mart’nália e, ao lado da colega, dá frescor ao didididiê do grupo Raça Negra em gravação feita com músicos do naipe de Dadi Carvalho (violão), Jamil Joanes (baixo) e, claro, Luiz Otávio nos teclados cheio de suingue e soul.
A swingueira do piano de Luiz Otávio dá toque diferenciado à abordagem de Sem abuso (Leandro Lehart, 2003), música menor do grupo Art Popular que reforça a sensação de que o repertório poderia ter sido selecionado com maior rigor.
Para dar o que chama de “aval” a um repertório que nunca a seduziu, Mart’nália convidou dois ícones da música brasileira. Com o pai Martinho da Vila, a cantora revive O teu chamego (Beto Correa, Lúcio Curvello e Pagom, 1992) com tal dengo que parece que o pagode do Grupo Raça é samba do próprio Martinho. Foi grande sacada chamar Martinho para cantar esse tema. O reencontro entre pai e filha é um dos pontos altos do álbum Pagode da Mart’nália.
Já a participação de Caetano Veloso em Domingo (Alexandre Pires, Fernando Pires, Vadinho e Renato Barros, 1993) resulta aquém do esperado de um grande intérprete como Caetano. A faixa é embalada por cordas arranjadas com aura clássica, mas faltou ao dueto o viço exibido pela abordagem de outro sucesso do Grupo Raça, Eu e ela (Délcio Luiz e Ronaldo Barcellos, 1994).
Nesse pagode, Mart’nália cai marota no suingue, dando sentido homoafetivo aos versos da música do qual o vocalista do álbum, Ronaldo Barcellos, é um dos compositores. Desencanada e assumida, Mart’nália também manda bem Recado à minha amada (Salgadinho, Juninho e Fi, 1996), sucesso do grupo Katinguelê.
No fecho do disco, um registro de voz e piano deixa Mart’nália a sós com Luiz Otávio em abordagem de Essa tal liberdade (Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, 1994) que realça melodia sobressalente na safra rala do pagode 90.
Embora irregular e sem a ambição artística dos primeiros discos da artista (o último trabalho realmente arrojado da cantora, Não tente compreender, saiu em 2012 e foi rejeitado tanto pelo público como pelo mercado), o álbum Pagode da Mart’nália tem mais altos do que baixos.
O que torna injustificável a escolha de Coração radiante (Xande de Pilares, Helinho do Salgueiro e Mauro Júnior, 2002) para ter sido o cartão-de-visitas do álbum em single editado em 25 de outubro (a partir de hoje, o foco é a azeitada faixa com Luísa Sonza).
Enfim, entre o molejo cativante e o chororô dos pagodes românticos que não encara com a devida emoção, Mart’nália se impõe na roda alheia pela ginga do samba.