22 de fevereiro de 2025

Posts que sugerem ligação entre inflação e descarte de alimentos usam vídeos de 2024 ou mais antigos


Imagens voltaram a viralizar como se fossem cenas dos últimos dias. Pesquisadora explica que esse tipo de situação, quando pontual, não tem poder de impactar os preços nacionais. Imagens de descarte de alimentos de 2024 ou mais antigas circulam em posts nas redes sociais que dizem se tratar de cenas recentes
Reprodução
Com a inflação dos alimentos, voltaram a circular nas redes sociais vídeos que mostram produtos como cebola, tomate e leite sendo descartados.
As imagens são sempre acompanhadas de legendas ou comentários que dizem se tratar de cenas recentes e atribuem o descarte a uma forma de produtores manipularem os preços: com menos alimento em oferta, eles conseguiriam cobrar mais caro.
O g1 verificou que muitos dos vídeos mais frequentemente compartilhados foram feitos em 2023 e 2024, e não nos últimos dias. Alguns deles já tinham circulado no fim do ano passado, em postagens com teor semelhante.
São descartes que aconteceram em regiões determinadas, como Irecê, na Bahia. Especialistas explicam que situações pontuais não poderiam ter efeito no preço de um produto para todo o país.
“Para impactar o preço nacional teria que ser massivo e uma conjunção de muitos produtores e muitos produtos”, afirma Aniela Carrara, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Esalq/USP.
Alimentos como tomate e cebola, que aparecem sendo descartados em vídeos de meados de 2024, terminaram aquele ano com queda nos preços, por exemplo.
O cultivo de hortaliças está centralizado em médios e pequenos produtores e é mais suscetível às variações do clima. Por isso, seus preços também costumam variar ao longo do ano.
“Quando o produtor descarta, ele não consegue retomar nem o custo que ele teve com a plantação. Significa prejuízo”, completa Carrara.
Leite, cebola e tomate
Protesto contra importações de leite no Rio Grande do Sul em 2023; à esq o vídeo que circula nas redes e, a dir., a reportagem da RBS TV da época
Reprodução redes sociais/RBS TV
Um dos vídeos que circulam mostra produtores jogando leite em uma estrada de asfalto. A imagem é de um protesto realizado em setembro de 2023, em Frederico Westphalen (RS).
Uma reportagem da RBS TV exibida no dia 27 daquele mês mostrou a mesma cena (assista abaixo). Na época, produtores de leite reclamavam de importações do produto de países do Mercosul.
Produtores de leite protestam em Frederico Westphalen
A reportagem citou que, segundo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS), as indústrias estavam comprando leite em pó principalmente da Argentina e do Uruguai. E que o preço que o produtor local recebia pelo litro de leite tinha baixado de R$ 2,53, no ano anterior, para R$ 2,17 em 2023.
O preço do leite longa vida terminou aquele ano com queda de 7,83% sobre 2022, segundo o IPCA, que é a inflação oficial. A bebida figurou entre os 50 itens que mais recuaram em 2023.
Vídeos de descartes de tomate (esq) e cebola circulam nas redes desde meados de 2024; preço desses alimentos terminou o ano em queda
Reprodução
Outros vídeos compartilhados nos últimos dias mostram o descarte de cebolas e tomates.
Um deles exibe um caminhão com sacos do alimento sendo abertos e as cebolas, atiradas ao chão. O narrador do vídeo, que não aparece na cena, afirma que “a cebola não presta, não, está toda estourando” e que os clientes estavam devolvendo as que foram vendidas, por isso elas estavam sendo jogadas no mato.
“Maquinei, botei outra sacaria, mas não adiantou”, diz o homem. Ele acrescenta que o alimento “vem de Irecê”, que fica na Bahia, mas não menciona a data. A postagem mais antiga encontrada com este vídeo é de 11 de novembro de 2024, no Instagram.
Em um outro vídeo que mostra cebolas no chão, um homem aparece dizendo que está na região de Irecê e que é 13 de novembro de 2024.
Uma reportagem do Globo Rural exibida uma semana depois informou que 17 mil sacos de cebola foram descartados em uma roça de João Dourado, na região de Irecê, no início daquele mês (reveja abaixo).
Agricultores do norte da Bahia jogam fora sacas de cebola (reportagem exibida em de novembro de 2024)
O produtor José Carlos Gomes, entrevistado no vídeo, disse que houve uma chuva muito forte da região e que isso afetou a qualidade da cebola.
A reportagem explicou ainda que os descartes também aconteceram por conta dos preços baixos. Gomes afirmou que havia excesso de oferta de cebola no segundo semestre daquele ano no estado.
Segundo o IPCA, o preço da cebola caiu 35,3% em 2024 em relação a 2023.
Ele chegou a apresentar alta em alguns meses no início do ano, devido às chuvas no sul do país, mas a estiagem que veio depois contribuiu para uma produtividade alta e, consequentemente, preços mais baixos para o consumidor.
Em 7 de novembro de 2024, o governo federal publicou no Diário Oficial da União a inclusão da cebola produzida na Bahia na lista de produtos que contariam com o bônus de desconto no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
A medida valeu até o início de dezembro e incluiu outros alimentos de diversos estados, como banana, mel, trigo e castanha de caju. O tomate também apareceu na lista, contemplando produtores de quatro estados: Bahia, Piauí, Sergipe e Rio de Janeiro.
A fruta também aparece servindo de alimento para vacas em um dos vídeos que mais circularam nos últimos dias, onde não foi possível identificar o local onde foi filmado.
O post mais antigo encontrado com essas imagens, no Tiktok, é de 28 de junho de 2024 e está num perfil que divulga vídeos de temas diversos.
Em outra postagem com o mesmo vídeo, de 3 de julho de 2024, ouve-se um homem dizendo que “está indo tudo para as vacas” porque “não vende”, tem “preço ruim”.
O preço do tomate fechou 2024 com queda de 25,8%, pelo IPCA. Em uma trajetória parecida com a da cebola, houve inflação no primeiro semestre e queda depois.
“Devido aos preços abaixo dos custos de produção desde meados de junho, e sobretudo aos níveis mais baixos que atingiram nos últimos dias, começou a ter descarte de parte da produção” do tomate, informou um boletim do Hortifruti, que faz parte do Cepea, em setembro passado.
O sobe e desce de preços é um cenário comum da produção de alimentos como a cebola e o tomate, e hortaliças em geral, que são bastante influenciados pelo clima, explicou João Paulo Deleo, também do Cepea, ao g1, em dezembro.
A subida de preço de um único cultivo não é considerada uma inflação da categoria alimentos, diz Carrara, do Cepea. Ela acrescenta que a inflação é o aumento contínuo e generalizado do preço, combinando uma diversidade de produtos.
Custo para o produtor na doação
O descarte de tomates já tinha sido tema de uma reportagem do Jornal Nacional (assista abaixo) em janeiro de 2017, que mostrou uma lavoura sendo destruída no Paraná. Na época, também havia mais produto do que o mercado conseguia absorver.
Agricultores jogam tomate fora: produção aumentou e preço desabou (reportagem exibida em janeiro de 2017)
Entrevistado na reportagem, o diretor do Departamento de Economia Rural (Deral) na época, Francisco Simioni, disse que o custo de colher o alimento e levar até os centros de comercialização “acaba ficando muito caro”, por isso o descarte acontecia já na lavoura.
No início da da pandemia de Covid, muitos produtores se viram sem ter como escoar os alimentos. Programas de doação surgiram naquele momento, alguns contando apoio de empresas para cobrir custos.
Em 2021, o g1 entrevistou Simone Silotti, fundadora da iniciativa Faça um bem incrível, que reuniu agricultores para doar alimentos em São Paulo. Ela explicou que os custos para para colher, embalar e transportar faziam com que muitos produtores desistissem de partir para alternativas como essa.
O projeto de Silotti começou com uma vaquinha virtual, para que os produtores tivessem alguma renda, e depois atraiu empresas que quiseram colaborar.
Em geral, agricultores optam pelo descarte apenas quando o produto não está bom para ser consumido ou não atende às exigências do consumidor, como cor, tamanho ou forma, explica Felippe Serigati, professor e coordenador do mestrado profissional em Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Isso não vem da vontade do produtor, mas de uma realidade do próprio mercado.”
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