De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica, o PL prevê que a pena para a mulher que fizer o procedimento seja mais dura do que a prevista para o homem que a estuprou. Manifestantes realizam ato no Masp, na Avenida Pauista, a favor do aborto legal.
RODILEI MORAIS/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
A presidente da OAB-SP, Patricia Vanzolini, condenou nesta sexta-feira (14) o projeto de lei (PL) em discussão na Câmara dos Deputados que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio simples. A entidade manifestou “profunda preocupação” com o projeto.
De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica, o PL prevê que a pena para a mulher que fizer o procedimento, hoje protegido por lei, seja mais dura do que a prevista para o homem que a estuprou.
“Essa equiparação remonta a leis da Idade Média e intensifica um sistema de proibição socialmente injusto. A criminalização severa do aborto não reduz a sua ocorrência, mas empurra as mulheres para procedimentos clandestinos”, afirma a presidente da OAB-SP.
Vanzolini também aponta que o projeto “impõe uma barreira significativa para as mulheres que foram estupradas, muitas vezes obrigando-as a levar a gravidez a termo, o que pode ser considerado cruel e degradante. Isso ignora a realidade de muitas mulheres brasileiras que sofrem estupro e enfrentam um longo caminho até conseguirem um aborto legal, frequentemente ultrapassando as 22 semanas”.
O que diz a OAB
“A Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB SP) manifesta profunda preocupação com a aprovação do caráter de urgência, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 1904/2024, que equipara ao homicídio o aborto de gestação acima de 22 semanas.
Em primeiro lugar, o projeto estabelece limites mais rigorosos para a interrupção da gravidez decorrente de estupro, restringindo-a até a 21ª semana. Esta mudança impõe uma barreira significativa para as meninas e mulheres que foram estupradas, muitas vezes obrigando-as a levar a gravidez a termo, o que pode ser considerado tratamento cruel e degradante.
Além disso, essa previsão ignora a realidade de muitas mulheres brasileiras que sofrem estupro e enfrentam um longo caminho até conseguirem um aborto legal, frequentemente ultrapassando as 22 semanas.
Em segundo lugar o projeto equipara a interrupção da gravidez a partir da 22ª semana ao crime de homicídio, aumentando consideravelmente as penas, algo sem precedentes na legislação brasileira desde 1830.
É comprovado que a criminalização severa do aborto não reduz a sua ocorrência, mas empurra as meninas e mulheres, principalmente as mais pobres para procedimentos clandestinos inseguros e com alto risco de vida, aprofundando a discriminação social.”
Entenda o projeto
O texto altera o Código Penal e estabelece a aplicação de pena de homicídio simples nos casos de aborto de fetos com mais de 22 semanas nas situações em que a gestante:
provoque o aborto em si mesma ou consente que outra pessoa lhe provoque; pena passa de prisão de 1 a 3 anos para 6 a 20 anos;
tenha o aborto provocado por terceiro com ou sem o seu consentimento; pena para quem realizar o procedimento com o consentimento da gestante passa de 1 a 4 anos para 6 a 20 anos, mesma pena para quem realizar o aborto sem consentimentos, hoje fixada de 3 a 10 anos.
A proposta também altera o artigo que estabelece casos em que o aborto é legal, para restringir a prática em casos de gestação resultantes de estupro.
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Conforme o texto, só poderão realizar o procedimento mulheres com gestação até a 22ª semana. Após esse período, mesmo em caso de estupro, a prática será criminalizada.
A proposta é assinada por 32 deputados, incluindo o segundo vice-presidente da Casa, Sóstenes Cavalcante, e o presidente da bancada evangélica, Eli Borges (PL-TO).
Manifestantes se reunem na Avenida Paulista a favor do aborto legal.
Reprodução/TV Globo
Atualmente, quando o aborto é permitido?
O aborto é crime no Brasil, mas existem três situações em que ele é permitido. São os casos de aborto legal:
se o feto for anencéfalo;
se a gravidez for fruto de estupro;
se a gravidez impuser risco de vida para a mãe.
Para os casos de gravidez de risco e anencefalia, é necessário apresentar um laudo médico que comprove a situação. Além disso, um exame de ultrassonografia com diagnóstico da anencefalia também pode ser pedido.
Já para os casos de gravidez decorrente de violência sexual – e estupro engloba qualquer situação em que um ato sexual não foi consentido, mesmo que não ocorra agressão -, a mulher não precisa apresentar Boletim de Ocorrência ou algum exame que ateste o crime. Basta o relato da vítima à equipe médica.
Apesar de parecer simples, não é. Mesmo que não seja necessário “comprovar” a violência sexual, muitas mulheres (e meninas) sofrem discriminação nos serviços de saúde na hora de buscar o aborto legal.
“Há muitos questionamentos quando a mulher relata que foi vítima de violência sexual. A legislação não exige que se faça o registro de ocorrência, só é preciso seguir um protocolo no serviço de saúde. Mas muitas mulheres sofrem discriminação por exercer esse direito, têm a palavra invalidada, tanto no serviço de saúde quanto em delegacias”, afirma Flávia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Quando decidem impor uma “data limite” para que as vítimas de violência sexual procurem o aborto previsto em lei, estão invalidando todas as questões que envolvem a tomada de decisão.
“Quem atende essas pessoas que procuram o aborto legal sabe que meninas e jovens adolescentes demoram mais para acessar o serviço. Muitas delas nem tiveram a primeira menstruação, não compreendem que sofreram uma violência, não tem acesso à informação. Além de passar pela violência, elas ainda correm risco de vida ao levar a gestação para frente”, diz Flávia Nascimento.
Quanto mais a gestação se desenvolve no corpo de uma menina, maior o risco dessa gestação à saúde da mãe (e aí já são duas situações previstas em lei: o estupro e o risco à vida da gestante).
Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), lembra que as vítimas de estupro não esperam passar as 22 semanas de gestação por “capricho”. Existem diversos motivos que podem levar a essa procura tardia.
“70% dos casos de estupro de meninas no Brasil acontecem dentro de casa, com pessoas conhecidas ou mesmo familiares sendo os agressores. A família demora para descobrir e quando descobre, fica no dilema de denunciar ou não. Aí o tempo passa, não existe um serviço próximo, é necessário viajar, mas não tem dinheiro para arcar. São incontáveis barreiras”, relata.
Reação no governo
O PL provocou reação no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e o ministro Silvio Almeida considerou a medida como um “imoralidade e inversão dos valores civilizatórios mais básicos”.
“É difícil acreditar que sociedade brasileira, com os inúmeros problemas que tem, está neste momento discutindo se uma mulher estuprada e um estuprador tem o mesmo valor para o direito. Ou pior: se um estuprador pode ser considerado menos criminoso que uma mulher estuprada. Isso é um descalabro, um acinte”, diz o ministro.
O ministro afirma ainda que o PL é inconstitucional porque “fere o princípio da dignidade da pessoa humana e submete mulheres violentadas a uma indignidade inaceitável, a tratamento discriminatório”.
“Trata-se da materialização jurídica do ódio que parte da sociedade sente em relação às mulheres; é uma lei que promove o ódio contra mulheres. Como pai, como filho, como cidadão, como jurista, como Ministro de Estado eu não posso jamais me conformar com uma proposta nefasta, violenta e que agride as mulheres e beneficia estupradores.”