Número de ações por acesso ao financiamento, negociações ou cobranças subiram de 8,9 mil para 31,3 mil. Governo criou programa para quitar financiamentos iniciados até 2017. Camila Ramos, de 41 anos, cursou biomedicina de 2003 a 2007 por meio do Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), programa do Governo Federal. A mensalidade na Universidade Metodista de São Bernardo do Campo era de R$ 1 mil. Desse valor, ela pagou 30% com dinheiro do estágio e os demais 70% foram financiados.
A formação não garantiu melhora financeira imediata, nem a médio ou a longo prazo. Passados 17 anos, ela não conseguiu se colocar no mercado da biomedicina. A cobrança da dívida do Fies perdura, ao ponto de a inadimplência se tornar uma briga na Justiça com a Caixa Econômica Federal.
“Quando eu terminei a faculdade, era um valor bem alto para a minha renda. Eu acabei não conseguindo arcar com os valores”, relembra. Foram pagos cerca de R$ 10 mil até as contas apertarem. Em 2014, o banco entrou na Justiça e cobrou o valor integral do financiamento: R$ 42 mil.
O processo de Camila é mais um em meio à pilha que tem aumentado nos tribunais brasileiros nos últimos anos. Ações ligadas ao Fies triplicaram de 2022 para 2023: subiram de 8,9 mil para 31,3 mil, o que representa aumento de 250%, segundo dados do DataJud, ferramenta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Veja mais abaixo.
Processos ligados ao Fies
Os processos são de pessoas que tentam garantir seu ingresso no sistema de financiamento de Ensino Superior, renegociar pagamentos ou valores das mensalidades, e entidades que cobram dívidas antigas, entre outros assuntos.
Houve média de 86 novas ações por dia em 2023, número que é de 112 processos diários em 2024.
Para Rafaela Carvalho, advogada com atuação em Direito à Educação do escritório VLV Advogados, estão entre os motivos para crescimento dos processos crise financeira, mudança na legislação com o Novo Fies e questionamento a regras para o estudante ter direito ao financiamento (leia mais abaixo).
“Um dos principais motivos de judicialização de casos relacionados ao Fies é a solicitação de estudantes para obter o financiamento estudantil mesmo sem alcançar a nota mínima exigida no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]”, afirma.
Veja, abaixo, o total de processos por estado:
“Eu tento negociar, já fui na Caixa infinitas vezes. Já tentei pelo Desenrola. Para você ter ideia, já entrei em contato até com o MEC, que me diz que é a Caixa que tem que fazer essa negociação. A Caixa fala que ela não tem poder de negociação, é só o MEC. Então um ficar jogando para o outro”, conta.
Formada na 2ª turma de biomedicina da Metodista de São Bernardo, Camila trabalha atualmente como terapeuta e não consegue quitar o financiamento com a atual renda à vista, como o banco público cobra na Justiça.
“Chegou um ponto que eu não consegui me colocar no mercado de trabalho e optei por abrir mão. Não foi por uma falta de um desejo de continuar na área, mas porque realmente ali não condizia com a realidade. Ao longo do tempo, eu acabei optando por outras áreas”, lamenta.
Busca por financiamento
Um dos processos do Fies iniciado e concluído em 2023 é o de Maria Eduarda Silva Gonçalves, de 21 anos, que cursa o 7° semestre de Medicina na Universidade Nove de Julho, na capital São Paulo. Mineira, ela tem ajuda da mãe para viver em outro estado e pagar a universidade.
Ela iniciou o Ensino Superior com mensalidade integral de R$ 8,7 mil e precisou acionar a Justiça para ter acesso ao Fies. O valor caiu para R$ 1,3 mil com o financiamento do Governo Federal, aprovado em dezembro de 2023.
“Minha mãe vendeu uma casa de R$ 350 mil para eu cursar medicina”, conta Maria Eduarda. “O Fies veio em um momento que mais precisávamos pois, se eu não tivesse conseguido, não estaria mais na faculdade”.
Maria Eduarda cursa medicina na Uninove, em São Paulo
Arquivo pessoal
Os dois anos de pagamentos com parcelas cheias, somado ao custo para se manter em outro estado, praticamente liquidaram o valor obtido com a casa. Maria Eduarda faz estágios não remunerados na sua área e tem previsão para se formar em 2027. Por enquanto, a dívida do Fies está em R$ 90 mil, estima.
“Imagino que vai ser complicado [pagar a dívida], vou precisar fazer bastante plantão. Acho que medicina me dá um pouco de segurança em relação a isso”, diz, ao se referir aos salários da profissão, que tem piso de R$ 19.404,13 para jornadas de 20 horas semanais, segundo a Federação Nacional dos Médicos.
Decisões variadas
O acesso ao Fies está entre as principais causas dos processos, conforme afirma Rafaela Carvalho, advogada com atuação em Direito à Educação. Como houve mudanças na lei com o Novo Fies e há critério de nota mínima no Enem para a pessoa poder entrar no Fies, a Justiça virou caminho comum para garantir o financiamento.
No entanto, ela afirma que nem sempre é possível prever qual será a decisão pelo fato de alguns juízes manterem a necessidade de nota mínima no Enem para acesso ao Fies. Já outros, conta a advogada, consideram que estudantes de baixa renda podem não ter acesso aos mesmos recursos educacionais e, assim, dão o direito ao financiamento.
“Esses casos sublinham a importância de um sistema de financiamento educacional que seja ao mesmo tempo acessível e sustentável, garantindo que todos os brasileiros tenham a oportunidade de alcançar uma educação superior de qualidade”, diz Rafaela Carvalho.
Renegociação de dívidas
O aumento no número de processos relacionados ao Fies ocorreu antes de o governo Lula, renegociar dívidas dos estudantes por meio do “Desenrola Fies” – o que ocorreu a partir de novembro de 2023.
Segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), são R$ 15 bilhões em dívidas atrasadas referentes a financiamentos iniciados até dezembro 2017 (período incluído no Desenrola).
Estimativa do governo indica que R$ 655 milhões já foram recebidos com os pagamentos das parcelas de entrada definidas nas 343 mil renegociações solicitadas até julho. Ao todo, o FNDE estima até R$ 3,1 bilhões a serem recebidos com o programa de renegociações. O prazo para inscrição termina em 31 de agosto.
“O programa Desenrola Fies foi uma resposta do governo para tentar mitigar esse problema, oferecendo condições mais favoráveis para a renegociação de dívidas. No entanto, a eficácia dessas medidas e a adequação dos critérios de renegociação ainda são objeto de debate e análise judicial”, analisa a advogada.
De acordo com o FNDE, os estudantes com dívidas do Fies que têm processo na Justiça podem renegociar suas dívidas nos termos da Resolução nº 55 do Desenrola.