25 de dezembro de 2024

Redação do Enem ou ‘cover’ de Machado de Assis: por que tantos alunos nota mil usam termos do século XIX, como ‘outrossim’?

É raro encontrar um texto com nota máxima que não tenha expressões como ‘destarte’, ‘assaz’ ou ‘com efeito’. Professores explicam que palavras antigas não garantem pontos extras — não faz diferença escrever ‘mormente’ ou ‘principalmente’. Por que candidatos do Enem parecem imitar Machado de Assis nas redações?
Arte/g1
Muitos alunos do Enem, não obstante suas limitações estilísticas, tentam imitar a linguagem de Machado de Assis em suas redações; outrossim, buscam uma escrita mais erudita para impressionar os avaliadores.
😨Calma, está tudo bem. Estamos em 2024, e não em uma versão do g1 do século XIX. A frase acima serve apenas para ilustrar o debate: por que tantas dissertações do Exame Nacional do Ensino Médio parecem “covers” de clássicos da literatura brasileira?
Veja só alguns trechos de dissertações nota mil das últimas edições da prova (e note o vocabulário, digamos, machadiano):
Candidato do Enem: “Outrossim, faz-se mister destacar, como outra dificuldade a ser defrontada para combater a invisibilidade do trabalho de cuidadoras, na nação, a deficitária formação civil, que leva ao preconceito social.”
Machado de Assis, em “Isaú e Jacó”: “Outrossim, meditava na ausência de vocação diplomática. A ascensão de um governo, — de um regime que fosse, — com as suas ideias novas, os seus homens frescos, leis e aclamações, valia menos para ele que o riso da jovem comediante.”
Outro exemplo:
Candidato do Enem: “Com efeito, hão de ser analisados os principais intensificadores da temática em questão.”
Machado de Assis, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”: “Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro.”
Professores entrevistados pelo g1 explicam que:
➡️Não é necessário seguir a “moda” de usar conectivos rebuscados para buscar uma nota alta na redação. O importante é demonstrar repertório vocabular e evitar repetições.
➡️Ninguém ganhará nem perderá pontos por usar palavras antigas. Mas, atenção para a cilada: não adianta querer parecer mais “culto”, mas usar termos que você desconhece. Se estiverem no contexto errado, comprometerão sua nota.
Entenda abaixo:
🕰️Por que tantos candidatos usam palavras como ‘outrossim’, ‘destarte’ e ‘decerto’?
“Dessarte, é inegável que, a respeito dos povos tradicionais, o Brasil possui entraves que precisam ser resolvidos.” – Maria Eduarda Braz, Enem 2022
Na Cartilha do Participante, publicada anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a orientação aos candidatos é: “Redija um texto dissertativo-argumentativo em modalidade escrita formal da língua portuguesa sobre o tema…”.
Por “modalidade escrita formal”, entende-se que os alunos devam:
seguir as convenções de escrita (ortografia, acentuação, pontuação, letras maiúsculas e minúsculas);
acertar a regência e a concordância (verbais e nominais);
não usar marcas de oralidade, como gírias informais;
escolher um vocabulário apropriado e correto para o contexto;
➡️usar “variados operadores argumentativos” e recursos linguísticos que garantam o encadeamento de ideias. ⬅️
Provavelmente, é esse último item que faz com que os estudantes se forcem a usar tantas palavras que não são mais comuns no século XXI.
“Se já usaram o ‘além disso’ para introduzir uma nova ideia, os alunos evitam repetir e, na segunda vez, escolhem escrever ‘ademais’. É nessa busca por variedade que acabam resgatando elementos presentes na obra de Machado de Assis”, afirma Felipe da Costa Rico, professor da Redação Nota 1.000.
Mas não há motivo para decorar expressões do século XIX. É possível usar conjunções e expressões variadas, dentro de um repertório mais próximo ao atual.
“O Inep exige que haja o uso de conectivos, mas não necessariamente tão formais quanto os empregados por Machado de Assis. Não faz diferença para o corretor se o aluno escrever ‘outrossim’ ou ‘da mesma maneira’”, explica Renato Fonseca, professor de redação do Cursinho da Poli (SP).
“Precisamos tranquilizar os estudantes quanto a isso. Eles costumam me pedir uma lista de conectivos para memorizar. Mas, se eles souberem empregar ‘dito isso’, ‘dessa maneira’ ou ‘em vista disso’, não há por que se preocupar com ‘destarte’”, diz.
O próprio Inep, na Cartilha do Participante, alerta os alunos:
Inep reforça que não há a necessidade de usar elementos coesivos em excesso
Reprodução/Inep
🤯’Na sociedade hodierna…’
As palavras rebuscadas usadas na redação do Enem não se limitam aos “operadores argumentativos”: também incluem advérbios (como “assaz”, em vez de “muito”, ou “mormente”, como sinônimo de “principalmente”) e adjetivos (sociedade “hodierna”, no lugar de “moderna” ou “atual”).
“Alguns cursinhos veiculam as redações nota mil e passam a condicionar os alunos a usar essas palavras, como se elas garantissem nota alta. E não é bem assim”, afirma Margarete Xavier, professora de língua portuguesa do Fibonacci Educação (SP).
“Para ter um bom desempenho, é preciso estruturar os parágrafos em uma sequência lógica, estabelecida de acordo com a sua argumentação. Não é o embelezamento vocabular que importa.”
Exemplos:
“Mormente, ao avaliar a intolerância religiosa por um prisma estritamente histórico, nota-se que fenômenos decorrentes da formação nacional ainda perpetuam na atualidade.” – Vanessa Soares, Enem 2016
“Assim, as nefastas políticas públicas que visem a coibir o vilipêndio à crença – ou descrença, no caso do ateísmo – alheia, como o estímulo às denúncias, por exemplo, fomentam a permanência dessas incoerentes práticas no Brasil.” – Laryssa Cavalcanti, Enem 2016
⚠️Cuidado, pode ser cilada
Se o candidato souber o significado das palavras mais rebuscadas (mesmo das que já caíram em desuso) e empregá-las no contexto correto, não perderá pontos.
O problema é que, na ânsia por imitar Machado de Assis e parecer mais “culto”, alunos acabam escolhendo termos sem sentido.
“Por mais que seja importante variar o vocabulário e usar sinônimos, não pode ser tudo no escuro. Sem saber a definição correta, os candidatos vão perder pontos na competência 1, de gramática, e na 4, de coesão e coerência”, diz o professor Felipe.
“Muitos confundem e escrevem ‘conquanto’ achando que significa ‘portanto’, sendo que é uma palavra adversativa [que introduz uma ideia de oposição]. É preciso ter cautela e bom senso. O Enem não avalia o rebuscamento, e sim o uso correto de palavras e o mínimo de repetição.”
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