‘A gente é trancado dentro do fluxo, sem água, sem comida, sem banheiro, sem nada’, diz usuário de drogas. MP também diz que vai apurar construção do muro. Antes do muro, um tapume de metal ficava no terreno que pertence ao município. Prefeitura diz que construção foi para substituir o tapume e proteger as pessoas. Defensoria gravou GCMs ‘escoltando’ usuários até área de muro na Cracolândia em SP
A Defensoria Pública de São Paulo chamou a área cercada por um muro e gradis na Cracolândia, no Centro, de “curral humano” em relatório de junho de 2024, dias após a finalização da obra.
Ainda no documento, a Defensoria descreveu que os usuários eram escoltados por viaturas da Guarda Civil Metropolitana e direcionados para a área cercada em grupos.
O g1 revelou a existência do muro, construído há seis meses, em reportagem publicada nesta quarta-feira (15). A gestão Nunes afirma que o muro não é usado para confinamento dos frequentadores, no entanto, eles são aglomerados atrás do muro onde ficam cercados por gradis.
“Nos deparamos com diversas pessoas em situação de vulnerabilidade social que vagavam sem rumo pelas ruas até a aproximação de viaturas da Guarda Civil Metropolitana, que forçavam o seu deslocamento”, segundo o relatório.
A Prefeitura diz que construção foi para substituir o tapume e proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade, além de moradores e pedestres, e não para ‘confinamento’. (veja nota no final do texto)
Nesta quarta, o Ministério Público de São Paulo informou que a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de Capital vai apurar o caso.
Um vídeo gravado por agentes da Defensoria mostra uma viatura seguindo um grupo, até que um homem começa a gritar que está “sendo tratado igual bicho”. Dois agentes saem da viatura e se aproximam dele. (veja acima)
“A gente é trancado dentro do fluxo, sem água, sem comida, sem banheiro, sem nada. Duas vezes por dia, estou de saco cheio de vocês. A gente é escravo agora”, gritava o homem.
Imagens da Defensoria Pública de SP em junho de 2024 mostram os usuários colocados dentro da área cercada.
Divulgação/ DP-SP
O mesmo homem conversou com um membro da Defensoria e disse que é trancado na área durante a manhã e à tarde.
“Trancam nóis em dois horários: 9 da manhã aproximadamente e depois, às 14:00, depois do almoço. E ficamos trancados dentro do fluxo, sem nenhuma cobertura, sem sombra. Se está chovendo, a gente fica na chuva, não tem nem aí. Não tem água, não tem comida, não tem banheiro. A gente não pode fazer nada, fica ali trancado sob a opressão deles, jogando gás de pimenta e rindo da nossa cara”, afirmou.
O relatório ainda menciona truculência e agressão por parte dos agentes.
“Destacamos que presenciamos diversas abordagens pessoais que, em nosso entendimento, não cumpriam qualquer finalidade preventiva, pois todas as pessoas revistadas já estavam confinadas no denominado fluxo e com restrição de circulação apenas à rua dos Protestantes.”
Outro vídeo mostra os usuários aglomerados do lado de dentro dos gradis.
Vídeo mostra os usuários aglomerados do lado de dentro dos gradis
O muro
Prefeitura de SP constrói muro de 40 metros de extensão e confina Cracolândia
O muro em questão foi levantado há 6 meses. A gestão Nunes informou que a construção foi feita para substituir um tapume que ficava no local.
A construção, de cerca de 40 metros de extensão e 2,5 metros de altura, fica na Rua General Couto Magalhães, na região da Santa Ifigênia, perto da estação da Luz.
Imagens do Google Maps, de abril de 2024, mostram que o próprio tapume já estava atrelado aos gradis.
Área da Cracolândia em abril de 2024.
Reprodução/ Google Maps
Segundo a própria prefeitura, o terreno da área pertence a gestão. Antes do fluxo migrar para lá, funcionava um estacionamento.
Placa de construção do muro.
Arquivo pessoal/ Luca Meola
Em junho de 2024, quando o muro de concreto já estava em pé, a prefeitura instalou gradis e delimitou ainda mais o espaço de usuários. Na época, o g1 publicou uma reportagem sobre os gradis. O uso do gradil foi decidido durante reunião entre agentes estaduais e municipais das áreas da saúde, assistência social e segurança.
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Frequentadores fora da área do triângulo enquanto é realizada a limpeza do local.
Divulgação/ DPSP
Por que foi levantado o muro?
A prefeitura argumenta que a construção, dentre outras medidas, ocorreu para melhorar o atendimento dos usuários, garantir mais segurança para as equipes de saúde e assistência social e facilitar o trânsito de veículos na região.
A administração municipal diz ainda que, entre janeiro e dezembro de 2024, houve redução, na média, de 73,14% de pessoas no local (leia mais ao final da reportagem).
No relatório, a Defensoria relata que “conversa reservada com equipes de saúde/assistência que atuam diretamente no fluxo”, foram informados que a adoção dos gradis “para confinamento das pessoas em espaço ainda mais reduzido em alguma medida facilitou o acesso ao fluxo, mas que os benefícios dessa iniciativa são questionáveis, pois nunca tiveram grandes dificuldades de acessar as pessoas no interior do fluxo.”
Prefeitura de SP constrói muro na Cracolândia
Arte/g1
Ativista fala em ‘campo de concentração de usuários’
Para um representante do coletivo Craco Resiste, no entanto, o muro fecha “um triângulo no fluxo” e cria um “campo de concentração de usuários”.
Com o muro e os gradis, a região vira um triângulo cercado. Em tese, os usuários são livres para sair e entrar no local, mas, segundo ativistas, são direcionados pelos guardas civis sempre para a mesma área.
Para entrar no cerco, eles passam por revistas, que seriam para retirar coisas ilícitas, segundo ativistas.
Para Roberta Costa, da Craco Resiste, o muro foi levantado para manter os usuários no espaço e “cobrir” a visão da Cracolândia para quem passa de carro pela Rua General Couto Magalhães.
“A gente vive hoje na cidade uma cena absurda e bizarra de violência contra as pessoas que estão desprotegidas socialmente. É uma coisa que não vem de agora, já faz muitos anos que o poder público viola essas pessoas”, critica.
Na avaliação dela, a situação só piorou. “O que a gente viu acontecer no ano passado está num nível muito bizarro, que, inclusive, parece visualmente um campo de concentração”, diz.
Roberta afirma que o muro “encarcerou” os usuários, e os movimentos de direitos humanos são impedidos de entrar na área para prestar serviço a eles. Ela conta que tentaram fazer uma ação de Natal no dia 22 de dezembro com frutas, comida e arte, mas foram impedidos de se aproximar dos usuários.
Ação realizada pela Craco Resiste no Natal.
Arquivo pessoal/ Luca Meola
Não cuidam e também nos impedem de cuidar. Esse triângulo é delimitado por esse muro que foi construído para as pessoas com carro não verem as pessoas que estão ali. E quem quer sair das grades ou ficar na calçada – do outro lado da rua – é comum receber spray de pimenta na cara para voltar para a grade.
De acordo com os documentos da Subprefeitura da Sé, o muro começou a ser erguido no final de maio e foi concluído no final de junho. O aceite definitivo da obra pela subprefeitura, feito após a inspeção do local, ainda não aconteceu, segundo o processo administrativo.
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Usuários se espalham
Enquanto houve redução de pessoas no fluxo da Cracolândia, outras regiões da capital registraram o surgimento de aglomerações de dependentes químicos.
São os casos da Avenida Jornalista Roberto Marinho, na Zona Sul da capital, e da Rua Doutor Avelino Chaves, na Vila Leopoldina, Zona Oeste.
Atualmente, na região central da cidade, o fluxo confinado pelo muro na Rua dos Protestantes é considerado o único ativo.
Reportagem da TV Globo mostrou que a média diária de usuários presentes no período da manhã foi de 511, em 2023, para 144, em 2024. Já à tarde e à noite, a média caiu de 467 para 149 pessoas.
Embora tenha diminuído a quantidade de pessoas nesse ponto, não houve queda no número de usuários.
Uma das maneiras de medir o uso de drogas por região é o nível de atendimento no hub de cuidados em crack e outras drogas, que é administrado pelo governo estadual.
Segundo o diretor da unidade do Centro, Quirino Cordeiro, a quantidade de dependentes, na verdade, só tem aumentado.
Essa tem sido uma constância no serviço, ou seja, temos atendido cada vez mais pacientes com dependência química e que estão em situação de rua aqui na região central de São Paulo.
‘Fluxo’ da Cracolândia diminui no Centro, mas surgem aglomerações em outros bairros
O que diz o contrato de construção do muro
No contrato, a obra é descrita para “a construção de muros de fechamento parcial do imóvel localizado na Rua General Couto Magalhães, esquina com a Rua dos Protestantes”. O imóvel em questão parece estar abandonado.
O contrato foi fechado em 15 de abril de 2024. A empresa beneficiada pela contratação é a Kagimasua Construções Ltda., com sede na região.
O contrato foi precedido de licitação na modalidade concorrência. A Kagimasua ofereceu o menor valor para a construção do muro.
A concorrência foi aberta em fevereiro de 2024. Diversas empresas participaram do pregão com lances acima de R$ 100 mil, mas somente a Kagimasua teve a proposta negociada, segundo dados do Portal da Transparência.
A via mencionada fica em uma das áreas mais policiadas da cidade, onde estão localizados o Departamento Estadual de Investigações sobre Entorpecentes (Denarc), o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), o Comando Geral da Guarda Civil Metropolitana (GCM), três batalhões da Polícia Militar, um batalhão da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) e duas delegacias.
Preço do muro
Croqui do muro.
Portal da Transparência Prefeitura de SP.
A empresa Kagimasua Construções foi autorizada a iniciar a obra em 2 de maio de 2024, com previsão para finalizar o muro em um mês. A empresa separou a construção do empreendimento em quatro etapas:
Administração local e canteiro de obras: onde foram colocados os valores gastos com engenheiro, encarregado de obra, um vigia, um tapume para ser colocado no local, placa de sinalização da obra e um portão metálico;
Valor de demolição de um tapume que ficava no local;
Remoção de entulho;
Fechamento de muro: onde foram colocados os valores da construção.
Foram gastos mais de R$ 6 mil em argamassa mista de cimento, cal e areia e mais de R$ 4 mil no reboco do muro. O material para levantar a estrutura de concreto custou mais de R$ 27,5 mil.
No pregão, a prefeitura não determina o valor, mas diz que os concorrentes precisam seguir o valor de mercado. No caso da prefeitura, o orçamento é feito com base na tabela de custos da própria gestão, que tem atualização todos os anos.
Segundo Claudia Passador, professora titular da USP e presidente da Sociedade Brasileira de Administração Pública (Sbap), se o pregão seguiu todas as etapas conforme a lei, ele está correto, mas vale questionar se o valor foi bem utilizado.
“O valor é escolhido a partir do processo licitatório que ganha o menor preço entre as empresas que se candidataram para a construção do muro. A gente pode questionar a construção, se é efetivo, se foi o melhor uso dos recursos públicos”, afirma.
Prefeitura de SP gastou R$ 95 mil para construir muro que cerca a Cracolândia
Problema histórico
Problema que se arrasta há décadas na cidade de São Paulo sem solução, a Cracolândia é alvo constante de promessas por parte dos políticos.
Em sua primeira entrevista após assumir o governo do estado em 2023, Tarcísio de Freitas (Republicanos) prometeu acabar com a Cracolândia.
A gente está conversando com a prefeitura e estaremos alinhados para dar efetividade para, por exemplo, dar habitação, fazer tratamento e tirar as pessoas das ruas dentro de uma lógica de confiança.
Mais tarde, em julho daquele ano, Tarcísio mudou o discurso, afirmando que iria transferir o fluxo para o Bom Retiro, também no Centro, onde fica o Complexo Prates com serviços públicos de atendimento a usuários de drogas. Após protestos de comerciantes e moradores da região, o governo desistiu da mudança.
O que diz a Prefeitura de SP
Em uma primeira nota enviada à reportagem, a administração municipal disse que o muro foi erguido para substituir um tapume que havia no local. Depois, mandou uma segunda nota em que afirma que o muro irá ajudar no trabalho dos assistentes sociais e facilitar o trânsito de veículos. Em seguida, a Prefeitura encaminhou uma terceira nota afirmando que o muro não tem como objetivo confinar os usuários.
Veja as notas abaixo:
Primeira nota da Prefeitura de SP:
“A Prefeitura de São Paulo informa que, desde agosto de 2023, a Cena Aberta de Uso (CAU) está concentrada na Rua dos Protestantes e é monitorada pelo Programa Dronepol, da Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU). Entre janeiro e dezembro de 2024, houve redução de 73,14% na média de pessoas no local.
Em relação à obra na Rua General Couto de Magalhães, a Subprefeitura Sé realizou a construção de um muro para substituir o tapume que havia no local, que era constantemente danificado. A ação favorece a segurança de moradores, trabalhadores e demais transeuntes.”
Segunda nota da Prefeitura de SP:
“A Subprefeitura Sé informa que a obra mencionada foi contratada por meio de licitação, respeitando todos os critérios técnicos e de transparência. O valor total teve como base as tabelas de custo estabelecidas pela Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB).
Para melhorar as condições de atendimento às pessoas mais vulneráveis dentro do fluxo, a Prefeitura implantou em 2024 o espaço da saúde em parte da Rua dos Protestantes, favorecendo o trabalho dos agentes de saúde e assistência social, garantindo maior segurança para as equipes e facilitando o trânsito de veículos. Somente entre janeiro e novembro de 2024, as ações da Prefeitura no local resultaram em 18.714 encaminhamentos para serviços e equipamentos municipais.
A Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU) ressalta que a Guarda Civil Metropolitana (GCM) atua de forma contínua nas Cenas Abertas de Uso, desempenhando patrulhamento preventivo e oferecendo apoio e proteção aos agentes públicos nos serviços de zeladoria, saúde e assistência social. A SMSU reitera que não compactua com desvios de conduta por parte de agentes da GCM e assegura que todas as denúncias recebidas são rigorosamente investigadas.”
Terceira nota da Prefeitura de SP
A Prefeitura de São Paulo contesta a divulgação de ilações sem fundamentos a respeito do trabalho de acolhimento e assistência à saúde sem precedentes que está sendo feito pela atual gestão na Cena Aberta de Uso (CAU) na Rua dos Protestantes. Seguem esclarecimentos:
1. O muro mencionado pela reportagem foi instalado onde já existiam tapumes de metal para fechamento de uma área pública. A troca dele foi realizada para proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade, além de moradores e pedestres, e não para “confinamento”.
2. Os tapumes eram quebrados com frequência, oferecendo risco de ferimentos a essas pessoas. Por isso, a substituição por alvenaria.
3. De novo, não há confinamento. Pelo contrário. Para garantir a segurança, acesso e atendimento às pessoas que ocupavam o terreno público, a Prefeitura retirou os tapumes do lado da Rua dos Protestantes, abrindo a área. O trecho ao lado da Rua Couto de Magalhães foi mantido para proteção das mesmas em decorrência do fluxo de veículos na via e circulação nas calçadas.
4. Além da substituição dos tapumes pelo muro, a Prefeitura também fez melhorias no piso da área ocupada para as pessoas em situação de vulnerabilidade. Portanto, não são verdadeiras as afirmações de que a administração municipal atuou na região com outros interesses que não sejam a assistência e acolhimento às pessoas em vulnerabilidade na Cena Aberta de Uso.
‘Fluxo’ da Cracolândia no Centro de SP.
William Santos/ TV Globo
Muro na Cracolândia
Deslange Paiva/g1