Órgão federal diz que construção provoca erosão, o oposto da justificativa usada pelo dono do terreno. Afirma ainda que argumento falso pode ter sido utilizado para justificar isolamento de propriedade privada à beira-mar, algo proibido por lei. Imagem aérea do Pontal de Maracaípe, em Ipojuca-PE, que mostra o muro de coqueiros instalado no local
Reprodução/Relatório Ibama
A polêmica envolvendo a construção de um muro de troncos de coqueiros no Pontal de Maracaípe, em Ipojuca, no Litoral Sul de Pernambuco, ganhou novos contornos na última semana, depois que a Justiça proibiu o governo do estado de derrubar a construção. A colocação da estrutura foi autorizada em fevereiro de 2022, sob a justificativa de contenção do avanço do mar na região, num terreno de propriedade privada.
Um relatório do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Pernambuco, a que o g1 teve acesso, indica que o muro de troncos de coqueiro está prejudicando o meio ambiente, em vez de evitar o assoreamento da área.
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No documento, o Ibama também questiona as informações utilizadas pelos proprietários do terreno para solicitar a construção, e diz que, pela configuração atual da instalação, o risco de erosão costeira pode ter sido utilizado como artifício para cercar uma propriedade privada que não poderia ser isolada, por se tratar de uma praia.
O laudo esclarece que isso contraria o que diz o artigo 10 da Lei 7661/1988, que instituiu Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, e afirma que:
“As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado o livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse público e de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica”.
O relatório foi produzido pelo órgão ambiental federal após demanda da senadora Teresa Leitão (PT), depois de uma audiência pública convocada pela prefeitura de Ipojuca para debater o assunto. Ele foi apresentado noutra reunião do mesmo tipo na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), em 23 de maio.
Após a audiência pública na Alepe, a CPRH voltou atrás e determinou a retirada do muro, sob a justificativa de que ele atrapalha o acesso à praia e que os responsáveis pela construção não cumpriram as regras acordadas.
O relatório do Ibama mostra uma análise de 15 anos de imagens de satélite da região e aponta que o muro pode estar contribuindo para o assoreamento da foz do Rio Maracaípe, provocando erosão e poluição da praia, além de prejuízos à fauna e à flora do local.
Imagem de satélite do Pontal de Maracaípe mostrando muro de troncos de coqueiro instalado no local
Reprodução/Relatório Ibama
Os técnicos especialistas em meio ambiente que realizaram a vistoria no Pontal de Maracaípe e fizeram as análises das imagens de satélite concluíram que a construção apresenta diversas irregularidades desde o princípio, que não foram levadas em consideração pela Agência de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH) ao autorizar que o muro fosse colocado.
Nas análises do Ibama, estão as seguintes conclusões:
Não foi identificada a erosão costeira alegada pelo empreendedor como justificativa para a construção do muro no Pontal de Maracaípe;
Mesmo na hipótese de ocorrência de erosão costeira, “não existe bem público a ser protegido que justifique a autorização para a construção do muro”;
O cercamento da área foi feito “com abuso de licença, uma vez que tinha sido autorizada uma linha de 250 metros, mas o empreendedor construiu 576 metros de muro — mais que o dobro da extensão autorizada”;
Os “milhares de sacos de ráfia utilizados estão se desfazendo e provocando extensa poluição com detritos plásticos”;
O empreendimento está 100% localizado em área de praia e a construção cortou a praia de forma brusca, interferindo em diversas características naturais da área;
Danificou a vegetação de restinga e, em algumas partes, bloqueia totalmente a comunicação entre o mar e a restinga, prejudicando o processo natural de deposição de solo, podendo aumentar a erosão nos próximos períodos de ventos e ondas mais intensos;
O muro barra o acesso de tartarugas marinhas à área de restinga, impedindo a reprodução desses animais silvestres e em risco de extinção no local.
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Autorização sem análise de impacto ambiental
Muro de troncos de coqueiros e sacos de ráfia utilizados para amparar estrutura instalada no Pontal de Maracaípe, em Ipojuca-PE
Reprodução/Relatório Ibama
As primeiras denúncias sobre a construção foram feitas pela Associação dos Moradores e Pescadores das Áreas de Mangue do Município de Ipojuca. Com o passar do tempo, os trabalhadores e comerciantes que atuam na região passaram a denunciar também os impactos da construção às suas atividades.
O relatório produzido pelo Ibama aponta que “o muro foi construído sem os devidos estudos técnicos científicos e sem licenciamento ambiental”, que deveriam ter sido feitos antes de uma intervenção com tantos impactos ao meio ambiente.
A construção do muro de coqueiros foi autorizada pela CPRH em fevereiro de 2022. Em setembro de 2023, a permissão foi renovada até setembro de 2024, sob a justificativa de que seria realizada uma “manutenção” na contenção — “feita de troncos de coqueiros, sacos de ráfia preenchidos com areia e manda de bidim geotêxtil” — material utilizado para drenagem e que “não constava na autorização inicial expedida em 2022”.
No relatório do Ibama, os especialistas questionam o uso de um instrumento simples como a “autorização” para permitir uma construção do tipo.
Pelos “inúmeros possíveis impactos à dinâmica costeira, à fauna e flora, à sociedade e à economia, obras de contenção costeira devem ser executadas apenas em último caso, em situações de emergências e somente autorizadas com base em estudo de impacto ambiental robusto que demonstre de forma detalhada e transparente tais impactos”, diz o laudo.
Neste ponto, o laudo técnico realizado pelo Ibama questiona diversos pontos e aponta infrações ambientais, como:
Inexistência de comprovação técnica e científica de que existia grave erosão costeira que justificasse o muro;
Inexistência de laudo com robusta comprovação técnica e científica realizada por profissionais com larga experiência nas áreas de oceanografia, geologia marinha, engenharia costeira e afins;
Dados com observação de, pelo menos, dois anos da região, para a coleta de informações estatísticas suficientes para avaliar se existia alguma erosão progressiva, ou apenas um movimento de balanço sedimentar, natural em ambientes como o do Pontal de Maracaípe;
Inexistência de informações sobre a empresa que construiu o muro;
Constatação de evidentes falhas no empreendimento: linha de troncos deslocados da posição perpendicular, ora inclinados em direção à restinga, ora inclinados em direção à praia, com risco à vida dos frequentadores, que podem sofrer ferimentos graves caso um ou mais troncos tombem subitamente;
Uso de sacos de ráfia, material plástico pouco resistente a pisoteio e à radiação solar, que está se desfazendo em detritos e poluindo toda a área de praia;
A presença de “inúmeros segmentos oxidados de arame farpado presos aleatoriamente aos troncos de coqueiros, oferecendo riscos de ferimentos aos usuários da praia”;
Acúmulo de resíduos, como cordas plásticas e materiais de pescaria, isopores, madeiras, garrafas de vidro, entre outros, na base do muro.
Ainda segundo o laudo do Ibama, uma análise simples dos materiais utilizados para erguer a construção teria prevenido o uso de itens considerados completamente inadequados para a finalidade proposta.
“Os indícios indicam que o muro foi construído de forma caseira e amadora, sem a contratação de nenhuma empresa especializada, e sua existência oferece risco à vida dos visitantes da praia do Pontal de Maracaípe”, diz o documento do órgão ambiental.
Por fim, o laudo técnico indica que os resultados das análises apontam que “as autorizações ambientais emitidas pela CPRH para a construção e manutenção do muro devem ser canceladas de imediato”.
Degradação dos sacos de ráfia utilizados na instalação do muro de troncos de coqueiros no Pontal de Maracaípe
Reprodução/Relatório Ibama
“O empreendedor deve ser penalizado e o Pontal de Maracaípe deve retornar ao status original, antes da fadiga da construção — com remoção do muro e todos os seus entulhos e resíduos, que devem ser retirados do local e destinados de forma ambientalmente correta, tendo em vista os inúmeros danos ambientais que essa obra causa a cada dia que ali permanece”, diz o documento.
O relatório conclui dizendo que há indícios de que a obra foi usada para um desvio de finalidade no pedido de autorização concedida pela CPRH.
“(…) os indícios apontam para um desvio de finalidade no pedido da autorização concedida pela CPRH, onde o proprietário tem o interesse de cercar sua propriedade com um muro em uma área que não permite edificação, pois é área de praia, e, na impossibilidade de realizar tal construção, conseguiu junto ao órgão ambiental uma autorização ambiental simples, sem qualquer estudo e licenciamento, alegando algo que não existe no local, erosão costeira, e sem nenhum equipamento público em perigo que justificasse a construção”, diz o documento.
Homenagem na Alepe pela autorização do muro
Chama atenção no relatório do Ibama e no processo de autorização para a manutenção do muro o fato de que foi solicitado um “voto de aplauso” para a Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) na Alepe.
O requerimento foi feito pelo deputado estadual Alberto Feitosa (PL), com notificação dos donos do terreno em questão, o advogado João Vita Fragoso de Medeiros e o empresário Marcílio Vita Fragoso de Medeiros; e de representantes da CPRH: o diretor-presidente José de Anchieta dos Santos e o diretor de Licenciamento Ambiental Eduardo Elvino Sales de Lima.
Voto de aplauso sugerido pelo deputado estadual Alberto Feitosa (PL) à Agência Ambiental de Pernambuco (CPRH) pela autorização do muro no Pontal de Maracaípe
Reprodução/Relatório Ibama
Esse voto de aplauso foi requerido quando já havia diversas denúncias sobre os problemas da obra e também tinha acontecido a audiência pública para debater o assunto em Ipojuca, que motivou a solicitação de análise técnica do Ibama.
Como justificativa, o parlamentar utiliza o argumento de “preservar o meio ambiente local em virtude dos efeitos do avanço do mar, tendo em vista que a medida já está trazendo impactos positivos à fauna e flora do local”.
As alegações foram consideradas pelo Ibama como “fake news” e “anticientíficas”, diante dos resultados das vistorias realizadas, incluindo a análise de imagens de satélite de um período de 15 anos e de laudos técnicos feitos com dados colhidos por técnicos especializados (veja imagem abaixo).
Trecho do relatório do Ibama sobre voto de aplauso pedido pelo deputado Alberto Feitosa (PL) à CPRH pela autorização do muro no Pontal de Maracaípe
Reprodução/Ibama
O que dizem os citados
Agência Ambiental de Pernambuco (CPRH):
O g1 entrou em contato com a CPRH para saber:
Por que o muro instalado no Pontal de Maracaípe foi autorizado sem a realização de laudo técnico prévio e sem estudo de impacto ambiental?
Quais parâmetros foram utilizados pela CPRH para autorizar a construção do muro e renovar a licença para a sua manutenção?
O que motivou a CPRH a cancelar a licença da construção no último mês de maio?
Os aspectos apontados pelo relatório do Ibama, como a inexistência de assoreamento na área do Pontal de Maracaípe, não foram verificados pela agência estadual antes da autorização para a construção do muro de coqueiros, visto que o argumento utilizado pelos proprietários do terreno se mostrou inverídico após fiscalização e análise de dados da região?
A CPRH fez uma vistoria no local antes da renovação da licença do muro ou o procedimento foi realizado apenas com tramitação de documentos protocolares?
Como a CPRH se posiciona em relação ao voto de aplauso solicitado pelo deputado estadual Alberto Feitosa à Alepe, em dezembro de 2023, utilizando como justificativa benefícios ambientais não comprovados tecnicamente e, posteriormente, negados por laudos técnicos e fiscalização do Ibama?
Que atitudes a CPRH tomará diante da proibição da Justiça para a retirada do muro?
A CPRH não respondeu aos questionamentos do g1 até a última atualização desta reportagem.
Deputado estadual Alberto Feitosa
O g1 perguntou ao deputado estadual Alberto Feitosa (PL) quais fontes o parlamentar utilizou para basear o seu pedido de voto de aplauso à CPRH, haja vista que as informações foram constatadas como inverídicas pela análise de especialistas em meio ambiente do Ibama.
Feitosa respondeu por meio de nota, enviada pela assessoria de imprensa, dizendo que as informações citadas “foram baseadas em um estudo realizado a pedido da própria CPRH, conforme estudo da erosão marinha, na região de Maracaípe/Ipojuca, e monitoramento trimestral do balanço sedimentar”.
Sobre o fato de o relatório do Ibama dizer que o parlamentar “despreza a ciência”, Feitosa disse que a afirmação é leviana e encaminhou ao g1 um documento que, segundo o deputado, foi solicitado pela CPRH para aprovar a renovação da licença e a manutenção do muro no Pontal de Maracaípe.
Ainda segundo o deputado estadual, as informações citadas foram baseadas neste documento, que teria sido produzido a pedido da CPRH, e embasaram a aprovação e a construção do muro.
Relatório de monitoramento da empresa de engenharia Vale Araújo, contratado pelo proprietário do terreno no Pontal de Maracaípe
Reprodução/Acervo pessoal
O documento encaminhado pelo deputado estadual é um relatório da empresa Vale Araújo Engenharia, cuja sede, de acordo com o que está impresso, fica localizada no bairro das Graças, na Zona Norte do Recife. O laudo foi contratado pelo proprietário do terreno localizado no Pontal de Maracaípe, João Vita Fragoso de Medeiros, e é assinado pelo engenheiro civil Alfredo Cesar Vale de Araújo.
O relatório atesta a existência de erosão na região alvo da disputa, o Pontal de Maracaípe, e explica quais procedimentos foram feitos para chegar à conclusão.
Entre outras informações, o relatório diz que:
As imagens aéreas “foram captadas em dois sobrevoos autônomos através do uso de um quadricóptero”;
Os resultados foram obtidos a partir de levantamento topográfico e morfológico da praia, com apresentação de um comparativo de imagens de satélite da “Linha da Costa” dos anos de 2014 e do dia 14 de outubro de 2023.
“Ateve-se a cumprir às exigências que constam na Autorização Ambiental CPRH nº 04.22.07.003394-6”;
“Os dados levantados permitem realizar outros tipos de análises, potencializando a quantidade e a qualidade das informações que podem ser extraídas”;
“Os dados obtidos e os valores apresentados são uma estimativa numérica e válida apenas para o dia 14/10/2023”.
O documento não fala sobre a pescaria de 500 kg de peixes, citada pelo deputado estadual como uma das supostas consequências positivas à fauna da região, decorrentes da instalação do muro de troncos de coqueiros.
Alberto Feitosa disse também que causou “estranheza” o laudo do Ibama “não ter sido levado ao conhecimento dos proprietários antes de ser divulgado para imprensa” e questionou “a mudança de postura do presidente da CPRH” em relação ao muro no Pontal de Maracaípe.
Por fim, Feitosa disse que o voto de aplauso solicitado por ele na Alepe foi feito para “valorizar a iniciativa da CPRH, que aprovou a construção do muro, e dar conhecimento aos proprietários” de que reconheceu a iniciativa.
Diante da explicação do parlamentar sobre o laudo realizado a pedido do proprietário do terreno ter sido o documento utilizado pela CPRH para autorizar a manutenção do muro no Pontal de Maracaípe, o g1 voltou a questionar a agência ambiental estadual se o relatório contratado pelo proprietário do terreno foi usado para basear a autorização para a construção e renovação da licença de manutenção da barreira instalada na praia.
Até a última atualização desta reportagem, a CPRH não havia respondido a essa questão.
Proprietários do terreno:
O g1 tentou, por diversas vezes, entrar em contato com o proprietário do terreno, João Vita Fragoso de Medeiros, mas não obteve sucesso até a última atualização desta reportagem.
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