Série do RJ2 revela detalhes de empresas que receberam milhões de verba pública sem contrato, como o PCS, laboratório investigado no escândalo dos órgãos infectados com HIV. Em 3 anos, a Fundação Saúde pagou mais de R$ 700 milhões em TACs, modelo criticado pelo TCE. Uma associação que recebeu, sem contrato, R$ 3,5 milhões da Fundação Saúde tem um fundador que diz ser laranja e um conselheiro que vive em “uma pindaíba danada” e se vira para ganhar a vida: é MC, pedreiro e camelô.
O RJ2 dá início nesta segunda-feira (28) a uma série de reportagens para revelar detalhes de algumas das empresas que receberam quase R$ 700 milhões, em três anos, em verba pública do Governo do RJ paga via os chamados termos de ajuste de contas, os TACs.
O modelo, que é o menos recomendado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ), foi adotado pela Fundação Saúde em várias parcerias, como as feitas com o PCS Saleme – o laboratório investigado no escândalo dos órgãos infectados por HIV.
Birubiru: MC, pedreiro, camelô e… conselheiro
Edenilson de Aguiar é, para o governo do estado, o executivo de uma associação que recebeu milhões de reais dos cofres públicos. Para o resto do mundo, Edenilson é o famoso MC Birubiru.
Ou nem tão famoso assim. Como não emplacou o hit “Pentada nas coroas”, ele precisa se dividir entre a música e um outro emprego, como mostra um dos vídeos postados em redes sociais.
“Mais um dia de correria? Muita parede hoje ou hoje é o microfone?”, pergunta um homem.
“Hoje é o microfone!”, responde Birubiru.
“Parede” é porque Edenilson trabalha como pedreiro: “Bom dia, começando minha quarta-feira colocando piso numa escada que fica do lado de fora (…) Valoriza o pedreiro que faz a sua obra com perfeição, valoriza”, diz ele em outro vídeo.
Nas redes sociais, MC Birubiru tem uma vida bem diferente do que declara ao governo do estado. Aos finais de semana, complementa renda como camelô em uma feira em Belford Roxo, na Baixada.
O MC – ou Edenilson – é membro do Conselho Fiscal da Cidadania e Saúde. A associação já recebeu R$ 3,5 milhões da Fundação Saúde para serviços de radiologia em UPAs. Isso sem qualquer tipo de concorrência, sem nem assinar um contrato, em um modelo que é considerado o pior possível pelo TCE.
Segundo o tribunal, o TAC é um instrumento pelo qual a administração pública reconhece a prestação de serviços sem o devido contrato. Tem caráter “excepcionalíssimo” e a utilização “não pode ser banalizada” – orientação que parece ter sido ignorada pela Fundação Saúde.
O RJ2 ligou para o MC, que afirmou não saber do que se tratava ao escutar que o nome dele aparecia como membro do conselho fiscal da empresa.
“Eu? Pô, tá de sacanagem! Tá maluco, cara. Tô numa pindaíba danada. Nem em Nova Iguaçu eu vou, pô. Sou aqui de Belford Roxo.”
Cabo eleitoral de Márcio Canella
Birubiru é cabo eleitoral do deputado estadual Márcio Canella, do União Brasil. Ele é um dos últimos parlamentares remanescentes da base aliada do governador Cláudio Castro na Assembleia Legislativa (Alerj) e recém-eleito prefeito de Belford Roxo.
Canella também é aliado de Doutor Luizinho, ex-secretário de Saúde, que mantém sua influência na pasta.
O presidente da Cidadania e Saúde é Sebastião Francisco da Silva Filho, conhecido como Tikinho do Gás. Ele tem algo em comum com Birubiru: também é cabo eleitoral de Canella.
A simpatia pelo prefeito recém-eleito é tão grande que ele até trocou o nome artístico: de Tikinho do Gás para Tikinho do Canella.
Quase tudo que ele posta nas redes sociais é sobre seu aliado – até na academia de ginástica. E quase nada sobre a empresa dele, que declara à Receita Federal ser em um endereço e ao governo do estado, em outro.
O RJ2 ligou também para Tikinho do Gás e questionou onde ficava a empresa. Ele afirmou que era presidente da Cidadania e Saúde, mas a ligação foi desligada quando o repórter insistiu que ele dissesse o endereço. Imediatamente depois, o telefone ficou fora de área.
De 13 fundadores, 10 receberam benefícios sociais
Embora Cidadania e Saúde seja bem-sucedida, até pouco tempo atrás Tikinho do Gás passava por dificuldades. Recebeu 16 parcelas do auxílio emergencial, distribuído pelo governo federal aos mais pobres na pandemia.
A empresa foi fundada como uma associação, com o nome Instituto de Cidadania e Projetos Sociais.
Um levantamento do RJ2 mostra que, entre os 13 fundadores, 10 receberam benefícios sociais, como Auxílio Brasil, auxílio emergencial, bolsa família.
Laranja assumido
Mas como uma empresa formada por pessoas que precisam de programas assistenciais conseguiu contratos milionários no governo do estado? Um processo encontrado pelo RJ2 pode ajudar a explicar: entre os fundadores há um réu confesso. Ou melhor, um laranja assumido.
Nivaldo Florentino do Nascimento é o primeiro secretário da Cidadania e Saúde. Em um processo que ainda corre na Justiça, ele admite que fingia ser dono de uma outra empresa, mas era tudo mentira. Só assinava os documentos, sem nem ler.
Atualmente, o suposto executivo da empresa consta na base cadastral do Departamento de Transportes como motorista de van. Declara passar os dias atravessando a BR-116 e a Linha Vermelha carregando passageiros entre Belford Roxo e o Rio de Janeiro, na linha M-527.
Para o Ministério Público, ficou evidenciado pelas fartas provas de um inquérito de 2018 que ele e um comparsa atuaram como laranjas na outra empresa.
Fatos confirmados também por Nivaldo, que confessou tudo em um acordo de não persecução penal, já homologado pela Justiça. É uma espécie de colaboração premiada.
‘Devo ser laranja, né? Laranja, mamão…’
A equipe de reportagem também ligou para Nivaldo, que disse desconhecer a empresa.
“Eu devo ser laranja, né? Laranja, mamão… Uma salada de frutas, aí. Eu desconheço”, diz Nivaldo. “Devem ter me jogado aí no meio. Eu desconheço.”
O que dizem os citados
O deputado Márcio Canella, do União Brasil, disse que, se há algo errado, o Ministério Público e a polícia precisam investigar e punir os culpados. Disse que teve mais de 180 mil votos para deputado e agora 155 mil votos para prefeito e que não pede antecedentes ou pergunta sobre a vida de cada cabo eleitoral.
A Fundação Saúde disse que o serviço de radiologia já foi licitado e a empresa vencedora está em processo de avaliação para contratação. Afirmou também que a nova direção assumiu há uma semana com o compromisso de dar mais celeridade às licitações.
A fundação disse ainda que, até 2020, geria 11 unidades e passou a gerir 65. Por isso, precisou fazer contratos emergenciais.