O g1 ouviu historiadores que contaram a histórias de figuras emblemáticas no surgimento da cidade. Rua Chile, a primeira do Brasil, em foto antiga
Arquivo Municipal/Fundação Gregório de Matos
O que um militar, um arquiteto, um padre e os povos indígenas têm em comum? Todos eles contribuíram de modo crucial para a fundação da cidade de São Salvador da Baía de Todos-os-Santos, primeiro nome da capital baiana.
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Surgida em 1549, há exatos 475 anos, completos nesta sexta-feira (29), a cidade foi criada para ser a sede do governo-geral português na América. Isso significa que Salvador, pelo menos inicialmente, foi uma cidade planejada – a primeira do tipo no continente – e seguiu as determinações do traçado definido pelo rei português Dom João III.
Nesse processo, alguns nomes foram destaques para a fundação da cidade. O g1 ouviu historiadores que contaram a história de três personagens. Confira:
Tomé de Sousa
Tomé de Souza retratado por Idalina Alves
Acervo Câmara Municipal de Salvador
Dom João III nomeou o militar Tomé de Sousa (1503–1579) como o primeiro governador-geral do Brasil e ordenou que ele fundasse, povoasse e fortificasse a cidade de Salvador. Em um dia 29 de março, como este, o português e sua tropa, com cerca de mil homens, desembarcaram para cumprir essa missão.
Conforme a Memória da Administração Pública Brasileira (Mapa), programa do Arquivo Nacional, antes de chegar em Salvador, Tomé de Sousa ingressou na carreira militar com apenas 15 anos e serviu na África e na Ásia. No Brasil, sua gestão durou até 1553, quando foi substituída pela de Duarte da Costa.
“Ele veio com a missão de fundar a fortaleza do Salvador. Chegou na região do Porto da Barra e depois saiu à procura de um local, que ele mesmo escolheu, sendo a atual região da Praça Municipal até a Praça Castro Alves. Ali começou a cidade”, disse o historiador Rafael Dantas.
Durante a administração, Tomé de Sousa estimulou a agricultura, com o incremento à cana-de-açúcar, e introduziu o gado bovino no Nordeste, trazido de Cabo Verde, colônia portuguesa no continente africano. Ele criou também o primeiro bispado no Brasil, em Salvador, e deu a base para a cidade ser, durante séculos, o principal entreposto comercial entre Portugal e as colônias.
Antigo Largo do Teatro – atual Praça Castro Alves
Arquivo IGHB
Luís Dias
Com Tomé de Sousa, fidalgos, militares, marinheiros, funcionários da Coroa, jesuítas, trabalhadores de diversos ofícios, colonos e até os chamados degredados vieram para a cidade e ajudaram também a fundar a capital. Obviamente, Tomé de Sousa não fez tudo sozinho e um dos seus braços direitos, que trabalhou, literalmente, na construção de Salvador, foi o arquiteto e militar Luís Dias.
Segundo o historiador Rafael Dantas, “ele foi o grande mestre de obras, o arquiteto responsável pelo planejamento e organização urbana de Salvador”.
Por ser menos famoso que seu contemporâneo, pouco se conhece sobre o passado do militar. O que se sabe é que foi ele o responsável por trazer as plantas da cidade e chefiar a execução das obras – tudo isso em um contexto desafiador de Cidade Alta e Cidade Baixa.
O que, por um lado, contribuía com a fortificação e segurança, por outro proporcionava dificuldades de logística. A falha geológica que separava a região mais elevada, onde Salvador surgiu, da área que hoje tem o bairro do Comércio, teve que ser superada por Luís Dias. Ele adaptou as plantas construídas à distância, em Portugal, para a realidade aqui encontrada.
Nesse processo, desabamentos foram frequentes devido às chuvas que castigavam – e ainda castigam – a cidade, com alagamentos e deslizamentos de terras. Dias ficou em Salvador até 1553, quando terminou o projeto de construção da cidade.
Mapa de Salvador em 1551
Centro de Estudos da Arquitetura na Bahia
Indígenas e Padre Manuel da Nóbrega
“Salvador nasceu como foi pensada: recinto cercado por muros e com portas, em seu espaço urbano um centro administrativo, residencial e comercial”, escreveu Patrícia Verônica, dessa vez no livro “Os Índios na História da Bahia”.
Tanta segurança era devido ao medo que os portugueses tinham dos tupinambás, que ocupavam Salvador antes da chegada dos europeus. Inclusive, antes de 1549, houve uma tentativa frustrada de fundar uma cidade no mesmo local onde fica Salvador.
“Primeiro, houve tentativa de ocupar a região da Barra, mas teve resistência indígena, que não aceitava a imposição do trabalho forçado e o desrespeito ao compadrio”, afirmou o historiador Daniel Rebouças.
O compadrio era um sistema que validava o poder de um chefe tribal pela quantidade de cunhados que ele tinha, ou seja, de casamentos que conseguiu para sua filha. “O náufrago Diogo Álvares Correia, o Caramuru, sobreviveu por entender essa lógica. Ele se casou com Catarina Paraguaçu e integrou a sua família, que tinha o domínio de um chefe indígena local.”
Teto da Igreja de Nossa Senhora da Graça com imagem de Catarina Paraguaçu ajoelhada em frente a Maria, mãe de Jesus
Reprodução/TV Bahia
Os povos originários não contribuíram apenas em determinar a forma como Salvador tinha que ser fundada. “Além da mão de obra, pois boa parte do trabalho braçal foi feito pelos indígenas, os primeiros núcleos urbanos soteropolitanos eram formados por, basicamente, portugueses e povos originários.”
Os indígenas eram o maior contingente populacional da antiga colônia, segundo os especialistas. Além de fornecerem matéria-prima, eles contribuíam no transporte de materiais para a área de construção, no fornecimento de alimentos e no partilhamento de conhecimentos sobre a terra e suas riquezas.
“Tal relevância é reconhecida por Frei Vicente do Salvador, que afirmou: ‘todo o ano de 1549 foi de labuta intensa, tendo as obras andamento satisfatório, em parte, em razão com os índios, ajudando sem exceção’”, escreveu Patricia Verônica.
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Manoel da Nóbrega Anchieta na cabana de Pindobuçu, por Benedito Calixto
Acervo UFBA
Os jesuítas que vieram com Tomé de Sousa atuaram na imposição do catolicismo para essa população. O padre Manuel da Nóbrega é um dos nomes mais proeminentes. Além de Salvador, o religioso atuou, em 1565, na fundação da cidade do Rio de Janeiro, onde morreu.
Na época, havia indígenas escravos e livres, que recebiam remuneração pelos serviços prestados. Alguns até fizeram parte da força militar e auxiliaram na defesa da cidade em caso de ataques de tribos hostis ou “intrusos” de outras nacionalidades europeias.
No entanto, isso não significou valorização dos povos originários. Pelo contrário, de acordo com Daniel Rebouças, a população de Tupinambás caiu de 40 mil, em 1563, para 3,5 mil, em 1583, por motivos diversos.
“Progressivamente, os portugueses estabelecem comitivas mais eficientes e o impacto da presença europeia vai desagregar esses tupinambás, que já eram também conflituosos entre si. Tem conflitos indígenas durante uns 50 anos nos limites de Salvador e em Itaparica. Mas, progressivamente, os portugueses vão ganhando terra. A opção dos tupinambás é abrir mão, sair dessa região. Isso, somado com as doenças trazidas pelos europeus, a mortandade em grande escala, os indígenas foram perdendo espaço na cidade”, disse.
Durante muito tempo, a tendência dos historiadores foi de não pesquisar sobre a influência da contribuição dos indígenas no surgimento de Salvador, segundo o especialista. “Hoje, a gente sabe que não era bem assim. O regimento de 1548, que dá as ordens para Tomé de Souza fundar a cidade, é consequência direta da relação com os indígenas e não do desejo português de fundar uma cidade.”
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