17 de outubro de 2024

Sites falsos e enredo de cinema: investigação mostra detalhes de como Israel enganou o Hezbollah com um pager ‘gordinho’

Inteligência articulou história para que produto ganhasse confiança no mercado, incluindo comentários de usuários na internet. Operação aproximou o Oriente Médio de uma guerra regional. Foto de 18 de setembro de 2024 mostra restos de pagers que explodiram em Beirute, no Líbano
AFP
As baterias dos pagers armados que chegaram ao Líbano no início do ano faziam parte de um plano israelense para enfraquecer o Hezbollah. Elas apresentavam características enganadoras, mas também um ponto fraco.
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Os agentes que construíram os pagers projetaram uma bateria que escondia uma pequena, mas potente carga de explosivo plástico e um detonador inovador que era invisível ao raio-X. As informações são de uma fonte libanesa e estão em imagens analisadas pela Reuters.
Para compensar a falta de uma história convincente sobre o novo produto com aparência “gordinha”, a inteligência de Israel criou lojas, páginas e postagens falsas na internet capaz de enganar qualquer verificação feita pelo Hezbollah, segundo uma análise de arquivos realizada pela Reuters.
A discreta criação da bomba disfarçada de pager e a cobertura cuidadosamente elaborada para a bateria, ambas descritas aqui pela primeira vez, revelam detalhes de uma operação que durou anos. O resultado foram golpes sem precedentes contra o grupo extremista apoiado e na aproximação do Oriente Médio de uma guerra regional.
Israel conseguiu enganar Hezbollah para implantar pagers
Juan Silva/g1
Uma folha fina e quadrada com seis gramas de explosivo plástico pentaeritritol tetranitrato (PETN) foi espremida entre duas células retangulares de bateria, segundo a fonte libanesa e fotos.
O espaço restante entre as células da bateria não podia ser visto nas fotos, mas estava ocupado por uma tira de material altamente inflamável que atuava como detonador, disse a fonte.
Esse “sanduíche” de três camadas foi inserido em um bolso de plástico preto e encapsulado em uma carcaça de metal com aproximadamente o tamanho de uma caixa de fósforos, mostraram as fotos.
A montagem era incomum porque não dependia de um detonador miniaturizado padrão, normalmente um cilindro metálico, segundo a fonte e dois especialistas em bombas. Todos os três falaram sob condição de anonimato.
Sem componentes metálicos, o material usado para desencadear a detonação tinha uma vantagem: como os explosivos plásticos, não era detectado por raio-X.
Ao receber os pagers em fevereiro, o Hezbollah procurou a presença de explosivos, disseram duas pessoas familiarizadas com o assunto, colocando-os em scanners de segurança de aeroportos para ver se disparavam alarmes. Nada suspeito foi relatado.
Os dispositivos provavelmente foram configurados para gerar uma faísca dentro do compartimento de baterias, o suficiente para ativar o detonador e desencadear a explosão, disseram os dois especialistas em bombas, aos quais a Reuters mostrou o design da bomba-pager.
Como os explosivos e o invólucro ocupavam cerca de um terço do volume, o conjunto de baterias carregava uma fração da potência condizente com seu peso de 35 gramas, segundo dois especialistas em baterias.
“Há uma quantidade significativa de massa não contabilizada”, disse Paul Christensen, especialista em baterias de lítio da Universidade de Newcastle, no Reino Unido.
Infográfico mostra bateria usada em pagers do Hezbollah
Juan Silva/g1
Em algum momento, o Hezbollah percebeu que a bateria estava se esgotando mais rápido do que o esperado, disse a fonte libanesa. No entanto, o problema não pareceu levantar grandes preocupações de segurança — o grupo ainda estava entregando os pagers a seus membros horas antes do ataque.
Em 17 de setembro, milhares de pagers explodiram simultaneamente nos subúrbios ao sul de Beirute e em outras fortalezas do Hezbollah. Na maioria dos casos, os dispositivos emitiram um sinal sonoro, indicando uma mensagem recebida.
Entre as vítimas levadas ao hospital, muitas tinham lesões oculares, dedos amputados ou grandes buracos no abdômen, indicando a proximidade com os dispositivos no momento da detonação.
No total, as detonações dos pagers e de walkie-talkies mataram 39 pessoas e deixaram mais de 3.400 feridos.
Duas fontes ocidentais de segurança disseram que a agência de inteligência israelense Mossad liderou os ataques com pagers e walkie-talkies.
A Reuters não conseguiu descobrir onde os dispositivos foram fabricados. O escritório do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que tem autoridade sobre o Mossad, não respondeu a um pedido de comentário.
O Ministério da Informação do Líbano e um porta-voz do Hezbollah se recusaram a responder a pedidos de comentário feitos pela reportagem.
Israel não negou nem confirmou relação com as explosões. No dia seguinte aos ataques, o ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, elogiou os resultados “muito impressionantes” do Mossad. Os comentários foram interpretados como um reconhecimento tácito da participação da agência.
Autoridades dos EUA disseram que não foram informadas sobre a operação com antecedência.
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A falha
Pagers usados pelo Hezbollah explodiram, em 17 de setembro de 2024
Reuters
Externamente, a fonte de energia do pager parecia um conjunto de baterias de íon-lítio comum, usado em milhares de produtos eletrônicos de consumo.
Ainda assim, a bateria, rotulada LI-BT783, tinha um problema: assim como o pager, ela não existia no mercado. Então os agentes israelenses criaram uma história do zero.
O Hezbollah possui rigorosos procedimentos para verificar aquisições do grupo, segundo um ex-oficial de inteligência israelense que não estava envolvido na operação dos pagers.
“Você quer ter certeza que, se eles procurarem, encontrarão algo”, disse o ex-espião, pedindo para não ser identificado. “Não encontrar nada não é bom.”
Criar histórias de fundo, ou “lendas”, para agentes disfarçados tem sido uma habilidade central das agências de espionagem. O que tornou o enredo do pager incomum é que essas habilidades parecem ter sido aplicadas a produtos eletrônicos de consumo comuns.
Para os pagers, os agentes enganaram o Hezbollah vendendo o modelo customizado, AR-924, sob uma marca taiwanesa renomada existente, a Gold Apollo.
O presidente da Gold Apollo, Hsu Ching-kuang, disse a repórteres um dia após o ataque que foi abordado cerca de três anos antes para discutir um acordo de licenciamento. Ele teria conversado com uma funcionária chamada Teresa Wu e o gerente dela, “chamado Tom”.
Hsu disse que tinha poucas informações sobre o superior de Wu, mas lhes concedeu o direito de projetar seus próprios produtos e comercializá-los sob a marca Gold Apollo.
A Reuters não conseguiu confirmar a identidade do gerente, nem se a pessoa ou Wu trabalharam conscientemente com a inteligência israelense.
O presidente disse que não se impressionou com o AR-924 quando o viu, mas ainda assim adicionou fotos e uma descrição do produto ao site de sua empresa. Isso ajudou dar ao pager visibilidade e credibilidade. Não havia como comprar diretamente o modelo no site da empresa.
Hsu disse que não sabia nada sobre as capacidades letais dos pagers ou sobre a operação mais ampla para atacar o Hezbollah. Ele descreveu a empresa dele como uma vítima da trama.
A Gold Apollo se recusou a fornecer mais comentários. Chamadas e mensagens enviadas pela Reuters a Wu não foram respondidas. Ela não fez nenhuma declaração à imprensa desde os ataques.
‘Eu conheço este produto’
Em setembro de 2023, páginas da internet e imagens apresentando o AR-924 e sua bateria foram adicionadas ao site apollosystemshk.com. O portal afirmava ter licença para distribuir produtos da Gold Apollo, além do pager e da fonte de energia do produto, de acordo com uma análise da Reuters de registros de internet e metadados.
O site fornecia um endereço em Hong Kong para uma empresa chamada Apollo Systems HK. Nenhuma empresa com esse nome existe no endereço ou nos registros corporativos da região.
No entanto, o site foi listado por Wu, a empresária taiwanesa, em sua página no Facebook. A informação também consta em registros públicos de incorporação, quando ela cadastrou uma empresa chamada Apollo Systems em Taipei, no início deste ano.
Uma seção do site apollosystemshk.com dedicada à LI-BT783 enfatizava o desempenho excepcional da bateria. Diferente das baterias descartáveis que alimentavam pagers de gerações anteriores, ela oferecia 85 dias de autonomia e podia ser recarregada via cabo USB, de acordo com o site e um vídeo promocional de 90 segundos no YouTube.
No final de 2023, duas lojas de baterias foram lançadas online com a LI-BT783 listada em seus catálogos, segundo descobriu a Reuters. E em dois fóruns online dedicados a baterias, os participantes discutiam a fonte de energia, apesar de sua indisponibilidade comercial.
“Eu conheço este produto”, escreveu um usuário com o apelido Mikevog em abril de 2023. “Ele tem uma excelente ficha técnica e um ótimo desempenho.”
A Reuters não conseguiu estabelecer a identidade de Mikevog.
O site, as lojas online e as discussões em fóruns apresentam as características de um esforço de engano, disseram à Reuters um ex-oficial de inteligência israelense e dois agentes de segurança ocidentais.
Os sites foram removidos da web desde que as bombas disfarçadas de pager causaram estragos no Líbano, mas cópias arquivadas e em cache ainda estão disponíveis para visualização.
Lamentando o dia em que compraram os pagers, os líderes do Hezbollah disseram que iniciaram investigações internas para entender como a falha de segurança pôde acontecer. Eles também buscam identificar possíveis informantes.
O grupo havia adotado os pagers no início do ano após perceber que as comunicações por celular estavam comprometidas pela interceptação israelense.
As investigações do Hezbollah ajudaram a descobrir como agentes israelenses usaram uma tática agressiva de vendas para garantir que o gerente de aquisições do Hezbollah escolhesse o AR-924, disse uma das pessoas familiarizadas com o assunto.
O vendedor que transmitiu a oferta fez uma proposta muito barata para os pagers, “e continuou baixando o preço até que ele fosse aceito”, disse a fonte.
As autoridades libanesas condenaram os ataques como uma violação grave da soberania do Líbano.
Em 19 de setembro, em seu último discurso público antes de ser morto por Israel, o líder do Hezbollah, Sayyed Hassan Nasrallah, disse que as explosões dos dispositivos poderiam equivaler a uma “declaração de guerra”. À época, ele prometeu punir Israel.
Hezbollah e Israel têm trocado disparos desde 8 de outubro de 2023, quando o grupo extremista começou a lançar foguetes contra posições militares israelenses em solidariedade ao Hamas.
Após os ataques dos dispositivos, Israel lançou uma guerra total contra o Hezbollah, incluindo uma invasão terrestre no sul do Líbano e ataques aéreos que mataram a maior parte da liderança do grupo.
A investigação interna do Hezbollah sobre o ataque dos pagers, ainda em andamento, sofreu um revés em 28 de setembro: onze dias após os dispositivos explodirem, o oficial sênior do Hezbollah encarregado de comandar a investigação de aquisições, Nabil Kaouk, foi morto por um ataque aéreo israelense.
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