Vítima do tráfico, ave endêmica do bioma corria risco de extinção décadas atrás. Terra da Gente acompanhou reintrodução dos animais, que ocorreu em março deste ano. Equipe do Terra da Gente acompanhou soltura de araras, na região de Campo Formoso (BA)
Márcio de Campos/TG
Para quem nunca esteve na Caatinga, essa vegetação típica do Nordeste brasileiro revela contrastes. Nem sempre ela fica só seca e com aspecto desértico, como imagina a maioria das pessoas que não teve a oportunidade se embrenhar nesse bioma.
Mas, pelo contrário, a caatinga também exibe muito verde, vigor e exala cheiro de perfume de flores. No início de cada ano, quando a oferta de chuva é boa, tudo se renova. O ciclo da vida mostra o poder da incansável transformação.
A região de Campo Formoso, no norte do Bahia, é um local isolado dos grandes centros urbanos, a mais de 400 km de Salvador (BA). Por aqui, é comum ver casas amarelas construídas com barro e observar cabras e bodes que caminham de um lado para outro, levando consigo o inconfundível sino pendurado no pescoço.
Daria até para dizer que a sinfonia no sertão é marcada pelo barulho desse instrumento que serve para manter o controle sobre o deslocamento dos rebanhos que são criados soltos na maioria das propriedades.
A comunidade de Cercadinho (BA), que fica a 2 horas de viagem do centro de Campo Formoso, mantém o estilo de vida de décadas passadas. Chegar até aqui exige paciência e veículo apropriado, só os com tração quatro por quatro conseguem vencer as subidas de pedras infindáveis desse lugar inóspito para quem não está acostumado à simplicidade das coisas.
Endêmica do Brasil, arara-azul-de-lear é uma das principais vítimas do tráfico de animais silvestres
Márcio de Campos/TG
Nessa comunidade não existe rede de energia elétrica. Em algumas casas, placas solares captam os raios que se convertem na única fonte de alimentação de energia, mas o fornecimento depende da capacidade das baterias instaladas. Ou seja, nem sempre dá para contar com abastecimento de eletricidade 24 horas por dia.
Em Cercadinho também não há farmácia, mercado, posto de combustível, nem padaria. Umas vinte casas se concentram na rua principal, de terra, que pode ser atravessada em alguns poucos minutos.
É nesse ambiente de rústico e isolado do Nordeste que vive uma das espécies de araras endêmicas do Brasil, a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). Esse psitacídeo quase desapareceu durante a década de 1990 e um dos motivos foi o tráfico de animais silvestres.
Ave ameaçada
A arara-azul-de-lear tem uma história peculiar. O ornitólogo francês Charles Lucien Bonaparte descreveu a espécie em 1856 com base em exemplares taxidermizados. Muito tempo depois, a espécie foi redescoberta no interior da Bahia.
Os pesquisadores tinham uma noção de onde ela poderia viver, no entanto, a confirmação só veio em 1978. Por ser uma região isolada, criminosos vinham até a região do Cercadinho em busca das araras.
Os filhotes de arara-azul-de-lear, nascidos na Fundação, serão soltos na natureza
Pedro Santana/TG
Grupos truculentos e armados ameaçavam os moradores e faziam o terror onde nem o Estado, nem a fiscalização ambiental vinham com frequência, dada a dificuldade de acesso e ao isolamento da comunidade.
Mas tudo começou a mudar com a chegada do Grupo de Pesquisa e Conservação da Arara-Azul-de-Lear nas áreas vizinhas ao Parque Nacional do Boqueirão da Onça.
A bióloga Erica Pacífico é uma das responsáveis pelo trabalho de reintrodução das araras-de-lear no interior da Bahia, desafio que assumiu há vários anos e que culminou com a primeira soltura das aves em 2019.
Soltura
O processo de reintrodução é delicado e leva tempo. Com autorização dos moradores, os cientistas construíram, em esquema de comodato, um viveiro numa área próxima aos campos de licuri. Essa espécie é um tipo de palmeira que produz um coquinho, que é a base de alimentação das aves.
Espécie se alimenta do licuri, coquinho proveniente dessa palmeira
Márcio de Campos/TG
A equipe do Terra da Gente acompanho todo o processo de soltura, que aconteceu em março deste anos. A bióloga Erica Pacifico explica que, antes da soltura, as araras ficam um período no viveiro para se adaptarem à várias circunstâncias.
“São quatro meses, desde que elas vêm do zoológico e do centro de reprodução, e aí elas passam um período de adaptação alimentar, aprendem a reconhecer o coquinho do licuri e aprendem a se alimentar do licuri nos diversos estágios de desenvolvimento do fruto”, relata Erica.
“Com o passar dos meses, a gente começa identificar comportamentos individuais que dizem pra gente das necessidades de cada animal. Aí a gente trabalha com eles de forma individual, mas trabalhando pra que eles sejam um grupo coeso para que eles possam aprender todas essas formas de se virar na natureza”, completa.
Antes da soltura, a equipe de biólogos faz ainda um check-up em todos os indivíduos que vão ganhar liberdade. “A avaliação da plumagem e do estado físico da ave é importante pra gente verificar a evolução nesse desempenho do voo ao longo nesses quatro meses que elas ficaram aqui”.
Biólogos fazem testes e avaliações nas araras antes da soltura
Márcio de Campos/TG
Alguns indivíduos recebem um equipamento para monitoramento à distância, já que estudar o comportamento a espécie também faz parte do programa. Os dados mostram que as araras-azuis-de-lear podem voar até 70 km por dia em busca de alimentos.
Para a soltura deste ano, a equipe de pesquisadores preparou um evento com a comunidade, que é uma estratégia importante para aproximar os moradores de Cercadinho da necessidade de preservação das araras. Um café da manhã comunitário foi servido antes do viveiro ser aberto.
O produtor rural Miguel Paulo do Nascimento é nascido e criado na comunidade. Para ele, presenciar a soltura das aves foi um momento especial. “Natureza tem que colocar na cabeça da gente que tem que zelar, tem que cuidar porque isso depende de nós. Eu mesmo, o que eu puder fazer pra preservar”.
“Além de bom é bonito. Coisa melhor que a gente acha quando acorda bem cedinho, já escuta o canto delas na roça, sai fora e já tá lá elas nos pé de licuri, comendo licuri, é lindo demais, não é ? E vai se multiplicar com fé em Deus”, diz Tomás João de Carvalho, outro sitiante local que também não escondia a emoção de ver as araras ganhando liberdade.
Os pesquisadores ainda vão acompanhar o dia-a-dia das araras por meses após a soltura, como conta a bióloga Gabriela Favoretto.
“São três meses de monitoramento diário em que a gente sai nas áreas de alimentação já conhecidas na região. Os animais que acabaram de ser soltos acabam formando um grupo com outros animais das três solturas anteriores, então a gente já sabe onde eles se alimentam”, diz.
Desde 2019, 19 aves foram reintroduzidas, se somadas às duas selvagens que há moravam na região. A equipe de pesquisa avalia que houve mais de 80% de sucesso no processo de reintrodução à natureza e alguns casais já se reproduziram, gerando quatro novos filhotes para o grupo.
Para uma espécie que correu o risco de ser extinta, as solturas têm que ser comemoradas. Vitória dos pesquisadores, vitória da natureza que, como a Caatinga, sempre se renova com um força inexplicável.
Parcerias
As aves que são reintroduzidas vêm de programas do ICMBio, de parceiros estrangeiros e de entidades que trabalham com a conservação de espécies. A reintrodução conta também com apoio financeiro de empresas como a BluestOne, que atua na transformação de resíduos.
“A Bluestone já é patrocinadora da Fundação Lymington há muitos anos e com esse aporte financeiro, a fundação pode intensificar suas ações de reprodução da espécie sob cuidados humanos para que esses filhotes possam voltar aos céus da Caatinga”, diz o gerente de projetos ambientais da empresa, Alexandre Resende.
Resende ressalta ainda que a união de forças de várias entidades tem garantido o sucesso na reintrodução da arara-azul-de-lear no Boqueirão da Onça.
“É muito importante essa parceria entre criadores científicos e zoológicos para reproduzir espécies ameaçadas e poder trazer para o projeto de soltura aqui, no habitat delas. No Boqueirão da Onça só tinha duas, ou seja, a população já está crescendo devido a esse projeto”, complementa ele.
VÍDEOS: Destaques Terra da Gente
Veja mais conteúdos sobre a natureza no Terra da Gente