O “anavantú” e o “anarriê” dão pistas das origens europeias de uma dança que move os brasileiros no São João. Diversas culturas e tempos distintos influenciam a festa popular, que continua se renovando. Anavantú! Anarriê! Quadrilhas juninas no Brasil tiveram influências de dança francesa
Arrumar uma roupa bonita, encontrar um par e dançar em harmonia com o grupo. Estas etapas poderiam descrever a preparação para uma quadrilha junina no Brasil. Ou poderiam também falar dos momentos que antecediam as quadrilhas que animavam os bailes franceses há alguns séculos.
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A quadrilha junina brasileira teve influência de hábitos que cruzaram o oceano com os colonizadores europeus. Chamada de quadrille’, no francês, a dança estava presente nas festas da corte portuguesa. Ao chegar ao Brasil em 1808, eles trouxeram o costume de dançar quadrilha.
Nos séculos seguintes, os brasileiros tomaram conta e perpetuaram a dança como tradição do período junino. A quadrilha veio se somar aos outros símbolos da festa popular, que mescla elementos de culturas e tempos diversos.
Em constante movimento, a celebração também abre espaço para temas variados. Em 2024, o São João de Maracanaú, no Ceará, é um dos exemplos ao homenagear Paris no ano em que a cidade recebe as Olimpíadas, retomando um elo entre a França e as festas juninas.
A quadrilha dos bailes europeus
A ilustração L’été representa um dos atos de uma dança da quadrilha em Paris por volta do ano de 1820.
Biblioteca Pública de Nova York/Coleção Digital
Nos séculos 18 e 19, o hábito de dançar quadrille fazia parte dos momentos festivos na Europa. Era o momento de reunir pares de homens e mulheres para uma dança com passos coreografados. Na França, era um costume entre os nobres durante as celebrações luxuosas da corte.
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A princípio, a dança se organizava com quatro ou oito pares dispostos em duas filas, que ficavam uma em frente à outra. O nome ‘quadrilha’ veio em referência ao quadrado formado pelas quatro extremidades do grupo.
Mas a quadrilha não era uma exclusividade dos franceses, como explica o historiador Aterlane Martins, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE) no campus de Quixadá e pesquisador do patrimônio cultural.
“A quadrilha é uma dança europeia, não unicamente da França, mas ela chega ao Brasil pelos portugueses a partir dessa influência francesa. Essa dança era executada nos salões da corte em qualquer momento do ano. Não era uma dança de um período, como se torna aqui no Brasil”, detalha o historiador.
No contexto da aristocracia francesa, a dança era feita com movimentos suaves ao som de instrumentos de orquestra, que executava uma sequência de marchas. Em passos ditados por um mestre de dança, os pares interagiam entre si, podendo desenhar diferentes figuras geométricas no salão.
Outros países europeus passaram a adotar a quadrilha, pois eram influenciados pela França como um modelo a ser seguido. No entanto, as quadrilhas também eram diversas no continente.
As ilustrações de Robert Cruikshank, por volta de 1810, mostram casais dançando quadrilha na cidade de Dublin
Biblioteca Pública de Nova York/Coleção Digital
A versão francesa já era uma herança da contradança originada na Inglaterra nos séculos anteriores. O termo original era country dance, ou seja, ‘dança do campo’. Isso por ser um divertimento comum entre os camponeses e as camadas populares.
“Toda tradição é uma invenção humana, ela não é natural. A própria quadrilha surge na Inglaterra a partir das danças populares, do folclore, ou seja, da cultura do povo inglês. Não era da corte. A corte [francesa] vem, se apropria e transforma em dança de elite. Aqui no Brasil, a gente passa pelo mesmo processo: os trabalhos históricos dizem que a festa migra dos salões para os sertões”, comenta Aterlane Martins.
Considerada a dança da moda, a quadrilha também era ensaiada em casa por quem estivesse se preparando para os bailes. Como a dança vinha em uma sequência de pequenos atos, os participantes praticavam para aprender os passos e até evitar acidentes.
Influenciada pelas quadrilhas, o cancan é provavelmente a dança ilustrada por Charles Vernier em Paris, por volta de 1860
Biblioteca Pública de Nova York/Coleção Digital
Em ilustrações da época, disponíveis no acervo digital da Biblioteca Pública de Nova York, cenas de danças da quadrilha são representadas em países como Inglaterra, Irlanda e França.
Além de inspirar o que veio a se transformar na quadrilha brasileira, a dança também deu origem a uma variante bastante ousada e que se tornaria tradicional na França: o cancan, que também era conhecido como quadrille naturaliste e se popularizou no fim do século 19.
A quadrilha chega ao Brasil
‘La Poule’ era uma das cinco partes das quadrilhas dançadas na Europa e nas colônias no século 19
Biblioteca Pública de Nova York/Coleção Digital
A quadrilha, como dança e também como música, foi uma das tendências culturais que entraram para o repertório do brasileiro após a chegada da família real portuguesa. Fugindo da invasão das tropas de Napoleão Bonaparte, mais de dez mil pessoas vindas de Portugal com a corte se instalaram no Rio de Janeiro em 1808.
As festas dos salões do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Salvador passaram a contar com a dança no período. Um dos grandes apreciadores das quadrilhas era D. Pedro II, como resgata a antropóloga Luciana Chianca no artigo “Quando o campo está na cidade: migração, identidade e festa”.
Assim como na Europa, a quadrilha da corte portuguesa no Brasil era um divertimento em qualquer época do ano. Conforme o historiador Aterlane Martins, estudos mostram que a quadrilha era a música mais solicitada nas celebrações da época.
“Quando ela chega [ao Brasil], ela é a dança da moda. Nós temos vários jornais que, no final do século 19, referenciam que em todas as capitais de província se queria copiar a capital do império, que era o Rio de Janeiro, e se dançava a quadrilha nas festas da aristocracia”, detalha Aterlane.
Ele destaca, também, que a dança começou a ser assimilada pelos homens livres e escravizados que também estavam nas festas, servindo ou participando. Isso ajudou a popularizar a dança para além dos salões e palácios.
Outro evento histórico importante é a Proclamação da República, em 1889, demarcando um período político em que as elites civis buscavam se distanciar dos costumes do período colonial e imperial.
Como cita Luciana Chianca em seu artigo, essa mudança de poder marcou a provável eliminação das quadrilhas das festas urbanas. A dança seria, então, mantida em espaços periféricos e nos interiores do Brasil.
A dança da quadrilha estava no centro dos festejos juninos no interior do Rio de Janeiro na década de 1950.
Arquivo Nacional
Para Aterlane Martins, este é um ponto importante para marcar o ‘abrasileiramento’ do hábito.
“A quadrilha era uma dança muito importante, era um traço cultural dessa aristocracia, dessa nobreza. Então ela cai em desuso. Os republicanos vão deixar de usar essa dança nas festas para tentar apagar essa memória do império. E onde ela vai ficar? Onde esse ideal não atinge de imediato: nas classes populares”, explica o pesquisador.
Como ressalta, o caminho percorrido pela dança da quadrilha ao longo do tempo evidencia a circularidade da cultura, visto que os grupos sociais interagem e se influenciam mutuamente.
A festança brasileira
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Assim como foi se transformando na Europa, a quadrilha ganhou adaptações e características próprias no Brasil.
Os instrumentos de orquestra foram substituídos pelo trio com triângulo, zabumba e sanfona nos terreiros. Os modos contidos deram lugar a movimentos vigorosos. O casamento matuto adicionou o componente teatral e caricato, e as vestes buscavam uma referência às zonas rurais.
A quadrilha virou uma mescla de elementos antigos e novos. O “anavantú” e o “anarriê” ficaram como expressões francesas faladas por quem não conhecia bem o idioma, lembra Aterlane Martins. “anavantú” vem de “en avant, tout”, que significa “todos para frente”, enquanto “anarriê” e derivada de “en arrière”, “para trás”.
Até mesmo o modo de comandar a quadrilha se transformou. O antigo mestre de dança dos salões virou o puxador. Atualmente, é chamado de marcador, podendo até mesmo auxiliar a coreografia com ajuda dos gestos. Ou ditando os passos em um microfone em algumas regiões do Brasil.
“Lá na corte, era uma dança que tinha quatro pares, às vezes um pouco mais, num salão com a música de orquestra, todo mundo seguindo aquela etiqueta do silêncio. Então você conseguia ouvir tranquilamente. Mas quando você vai pra rua, pros terreiros na periferia ou nos sertões, é um outro cenário… Além de ter muita gente dançando, você tem uma zabumba, que é um barulho muito forte. Todo mundo ali ao redor não fica em silêncio, porque não é a etiqueta. Então a voz [do puxador], por algum tempo, funcionou”, detalha o historiador.
O casamento matuto ainda é um elemento importante nas apresentações atuais de quadrilhas juninas
São João de Maracanaú/Divulgação
Mas a dança, de influência europeia, é apenas um dos muitos elementos ainda presentes na nossa cultura junina.
Comidas, ritmos e jeitos singulares de festejar em cada região mostram que as práticas do período se transformam com os traços do cotidiano e da cultura de quem celebra, como pontua Hayeska Barroso, professora adjunta do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB).
Ela ressalta a complexidade de símbolos em uma festa que não tem uma dinâmica unificada nem segue parâmetros padronizados, tendo se transformado em cada tempo e lugar.
“Se a gente localizar essa festa pensando na região Nordeste, ela vai estar relacionada às festas da colheita, à celebração do milho. No Centro-Oeste, por exemplo, é um período de temperaturas mais frias. Isso vai se particularizar em cada região. A festa junina é tão heterogênea e democrática, que ela é celebrada das mais diferentes formas. As camadas populares reinventam as formas de festejar permanentemente e cotidianamente”, defende.
Dentre os elementos evocados até hoje na festa, a fogueira é o exemplo de uma herança que vem de tempos distantes: ela era usada em rituais pagãos dos povos europeus para o solstício de inverno no hemisfério Norte no mês de junho.
Em um processo histórico de colonização, o Brasil já recebeu esses festejos com a roupagem da Igreja Católica, que incorporou a devoção a São João, São Pedro e Santo Antônio.
Como lembra Aterlane Martins, mesmo esta vinculação da festa com os santos foi adquirindo novos significados em terras brasileiras. Por exemplo: o Santo Antônio, lembrado em Portugal como intelectual e doutor da Igreja, é reverenciado como o casamenteiro por aqui.
Na tradição brasileira, a devoção a Santo Antônio no período junino está ligado aos pedidos por um bom casamento
Divulgação/Noite das Solteironas
A festa também é fortemente marcada pela gastronomia herdada dos povos indígenas, com muitos pratos baseados na colheita do milho.
O historiador ressalta, ainda, a espiritualidade de matriz africana nas diversas simpatias para casar, viver mais ou obter outros desejos como práticas comuns até a década de 1990.
“Quando eu fui ler estudos sobre o tema, eu deparei com uma religiosidade negra em várias ações que são oferendas pra orixás, sem uma relação direta com os santos católicos ou então em uma mistura. É importante perceber essa diversidade da cultura junina”, explica.
Estes elementos diversos que compõem o São João têm sido trazidos pelas quadrilhas que apresentam temas a cada ano em suas apresentações. Desta forma, a cultura indígena e entidades da espiritualidade africana também ganham destaque.
Um reencontro com a França
O São João de Maracanaú faz homenagem à cidade de Paris em 2024
São João de Maracanaú/Divulgação
No Ceará, o São João de Maracanaú também aposta na diversidade de temas que cabem na festa. O espaço que recebe shows e apresentações de quadrilha faz uma homenagem à cidade de Paris.
A Torre Eiffel, a pirâmide do Museu do Louvre e até um quadro da Mona Lisa nordestina são algumas das referências encontradas pelo público no local da festa, que acontece na região metropolitana de Fortaleza até o dia 23 de junho.
A escolha do tema faz alusão a Paris como sede das Olimpíadas em 2024. O evento junino, promovido pela prefeitura de Maracanaú, conta com a divulgação internacional em território francês, envolvendo encontros com membros da embaixada e do consulado do país europeu.
Com bandeirinhas juninas em azul, vermelho e branco, o espaço da festa também traz uma réplica da fachada do cabaré parisiense Moulin Rouge. Como lugar de misturas e conexões, os festejos juninos da cidade contam ainda com monumentos e fachadas que aludem a outras cidades, do Cristo Redentor aos prédios de Nova York.
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