19 de outubro de 2024

‘Turismofobia’: por que tradicionais destinos turísticos estão se esforçando para espantar visitantes

Os principais problemas com o excesso de turismo são, entre outros: trânsito; barulho; perda da identidade local; e substituição de comércios locais por grandes empreendimentos, por exemplo. Por outro lado, há quem defenda incentivos econômicos ao local. Hordas de turistas dispostos a gastar e fortalecer o comércio local costumavam ser motivo de orgulho para as cidades, que inclusive se esforçavam para receber mais e mais visitantes. Mas, em muitos lugares do mundo, inclusive destinos queridinhos dos brasileiros, o jogo virou. Agora, moradores criam estratégias para espantar turistas, entre elas taxas, limites diários de passeios e até proibição de circular ou tirar fotos em determinados pontos.
✈️ 🧳O fenômeno não tem um nome oficial, mas é chamado informalmente de “turismofobia” ou “overtourism”, por exemplo. Na prática, os termos referem-se à presença exagerada de turistas em um determinado lugar.
Para Ricardo Roitburd, docente da área de Turismo do Senac São Paulo, a “turismofobia” reflete a insatisfação dos moradores locais com as consequências que esse excesso traz.
“Essa insatisfação pode ocorrer por diversos motivos, como o aumento da violência e do trânsito e o esgotamento da infraestrutura (água, energia, esgoto etc.)”, explica Roitburd.
“A baixa percepção de retorno econômico e social da vinda dos turistas tem fomentado o crescimento expressivo da ‘turismofobia’.”
Renan Augusto Moraes Conceição, pesquisador e doutorando em turismo pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP) e professor do Instituto Federal de São Paulo, tende a refutar o termo “turismofobia” — fobia, ao pé da letra, significa “medo exagerado”, “falta de tolerância”, “aversão”.
Ele atribui a popularização da palavra à imprensa — para além disso, os argumentos dele, entretanto, vão ao encontro do que defende Roitburd.
“Não é um ódio ao turista. É contra essa forma de se produzir um fluxo turístico que desconsidera completamente a população que vive naquele lugar”, diz Conceição.
“Não é tão simples assim. É o que aparece [na imprensa]. Porque, aí, tem um entendimento mais amplo, mas acaba deixando de fora e desconsiderando os reais motivos da manifestação, que é justamente esse encarecimento da vida, essa impossibilidade de viver onde a pessoa morou a vida inteira, os transtornos e os distúrbios urbanos.”
Entre os principais problemas com o excesso de turismo, segundo profissionais que estudam o tema, estão:
trânsito em excesso;
muito barulho;
perda da identidade local;
e substituição de comércios locais por grandes empreendimentos.
Espanha, Holanda, Japão, Brasil…
A Espanha é um dos exemplos mais clássicos (e antigos).
Em julho desse ano, moradores protestam com pistolas de água contra turistas em Barcelona sob o lema “Basta! Ponhamos limite ao turismo!”. Por lá, o prefeito Jaume Collboni anunciou planos de proibir aluguéis de imóveis de curto prazo a partir de novembro de 2028.
Também na Espanha, outro exemplo é Maiorca. “Muitos turistas têm comprado imóveis na ilha, inflacionando os valores e dificultando a compra pelos moradores locais”, avalia Roitburd.
Já em Veneza, na Itália, o governo passou a cobrar uma de taxa diária de 5 euros de turistas. E Amsterdam, na Holanda, proibiu a construção de hotéis como uma tentativa de “manter a cidade habitável para residentes e visitantes”.
E, mais recentemente, ocorreu algo semelhante em um local fora do tradicional círculo europeu: o Japão, considerado um destino longe e caro.
“A partir das Olimpíadas de Tóquio, o Japão entrou no radar do turismo internacional, o que incomodou a população. Aí, eles começaram justamente a fazer as mesmas coisas que aconteceram na Europa: fechar ruas para a circulação de turistas, como é o caso de Kyoto, aquelas ruas tradicionais onde ficam as casas de gueixas e tudo mais”, diz Conceição.
Em março, Isokazu Ota, um dos principais membros do conselho comunitário local, disse, segundo a agência AFP, que as autoridades não queriam tomar tal atitude, mas que “estavam [todos] desesperados”.
Em maio deste ano, outra cidade no Japão inaugurou uma cortina preta de 2,5 metros de altura e 20 m de comprimento para separar os turistas de uma vista do monte Fuji em frente a uma loja de conveniência.
Por aqui, um exemplo clássico e conhecido é Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo. Em dezembro de 2023, a prefeitura deu início à primeira temporada de verão desde a implantação da taxa ambiental — uma cobrança diária para veículos na cidade.
Em todo caso, como defende Conceição, “o cotidiano do morador é profundamente impactado por esse fluxo intenso de turistas.”
De quem é a culpa?
Muita gente coloca a “culpa” no pós-pandemia. De certa forma, é um clichê, mas real: a Covid mudou muito o modo de viver e trabalhar de todos. Já se passaram quatro anos desde o ápice, mas ficou a sensação de que é necessário aproveitar mais os momentos em família, evitar o trânsito com deslocamentos ao trabalho e privilegiar o bem-estar.
🏖️ Bem-estar esse que, muitas vezes, está ligado a passeios, viagens…
“No pós- pandemia, os locais turísticos tiveram um aumento expressivo de turistas que, por um lado levaram emprego e crescimento econômico, mas, por outro, inflacionaram os preços e ocuparam os espaços outrora dos moradores”, diz Roitburd.
Para além da pandemia, há quem defenda que a facilidade proporcionada pela internet, que se disseminou ao longo dos anos, tenha peso nessa discussão. Por quê? Com mais acesso a informações, fica mais fácil encontrar destinos, fazer reservas, comprar voos, trocar moedas etc.
Além disso, a popularização de séries e filmes ambientadas em lugares fora do comum podem ter dado um empurrãozinho.
Segundo a agência de notícias AFP, o fascínio pelas gueixas de Kyoto cresceu desde a estreia da série “Makanai, a cozinheira maiko”, no início de 2023, na Netflix.
Tem solução?
Se discutido de forma ampla, com autoridades, estudiosos do tema e os próprios moradores, pode ser que sim — o que não significa que a tarefa seja fácil.
O professor Roitburd defende que o assunto seja debatido, também, em sala de aula.
“Os futuros profissionais do setor precisam perceber este movimento e principalmente refletir sobre isso, não só para ficarem atualizados, mas, principalmente, para ajudarem a encontrar soluções inovadoras para estes conflitos.”
Quanto a cobranças de taxas, por exemplo, há quem defenda que isso elitiza o acesso a lugares turísticos importantes, já que a viagem tende a ficar mais cara.
“São formas eficientes, mas, ao mesmo tempo, excludentes, causando uma discriminação entre os mais rápidos para reservar ou os de maior poder aquisitivo”, diz Roitburd.
Onde menos é mais (para os habitantes locais)
Na ponta dessa lista está a Itália como o lugar mais famoso na batalha contra malas e selfies para redes sociais em excesso. Mas, fazendo escola pelo mundo, a Itália não é o único país com cidades nessa situação… A seguir, conheça alguns lugares onde “menos (turistas) é mais”:
Veneza
Pioneira na prática, a cidade de Veneza iniciou, em abril, a cobrança de uma taxa de entrada diária de 5 euros (cerca de R$ 30). A cidade recebeu, em 2023, 20 milhões de turistas, em uma área de 5 km² e que conta com 49 mil leitos turísticos.
Na contramão do risco de mais turistas em uma cidade que corre risco de “desaparecer”, há moradores que temem que o local se transforme em um “museu”.
Há alguns anos, especialistas da Unesco chegaram a cogitar que a cidade entrasse em uma lista de lista de patrimônios mundiais ameaçados.
Imagem de arquivo mostra Veneza
Reprodução Jornal Nacional
Cinque Terre
Ainda na Itália, autoridades de Cinque Terre, um conjunto de vilas encaixadas entre a costa da Ligúria e montanhas íngremes, trabalham urgentemente para garantir que o local, também um patrimônio da Unesco, não corra o mesmo risco que Veneza.
Segundo o jornal britânico “The Guardian”, as medidas testadas até agora incluem tornar unidirecional a trilha mais congestionada do parque nacional, o Sentiero Azzurro, que se estende entre Monterosso al Mare e Vernazza, em feriados públicos.
Manarola, Cinque Terre
Reprodução/Twitter/@cinque_terre
Mas o maior desafio de Cinque Terre é gerenciar as multidões que lotam suas pequenas vilas. Os 4 milhões de visitantes que estiveram lá no ano passado estavam concentrados em uma área de 1 km, apenas 3% de todo o parque nacional, também segundo o “Guardian”. A maioria chega de trem, mas milhares de passageiros por dia desembarcam por ferries que transportam passageiros de navios de cruzeiro atracados na vizinha La Spezia.
O parque de Cinco Terras também vai cobrar ingresso para famosa passarela costeira conhecida como o Caminho do Amor. Haverá visitas com horários determinados e vagas limitadas. O preço ainda não foi estabelecido.
Dubrovnik
Dubrovnik, na Croácia, em foto de junho de 2022
Oktoober/Wikimedia Commons
A cidade croata de Dubrovnik proibiu que viajantes desembarquem na região com malas de rodinhas.
A proibição inusitada, que dividiu opiniões na internet, veio depois de diversas reclamações de cidadãos locais por causa do barulho.
Barcelona
Imagem ilustrativa mostra a cidade de Barcelona
Reprodução Jornal Nacional
O prefeito de Barcelona anunciou que vai proibir aluguéis por temporada para combater a falta de moradias. Essa medida, segundo a associação de proprietários, entretanto não vai resolver a crise dos alugueis na cidade — que, em geral, aumentaram quase 70% na última década.
Bali
Desde fevereiro, os visitantes da ilha indonésia de Bali são obrigados a pagar uma taxa de 150 mil rupias indonésias por visita.
O montante arrecadado é utilizado para apoiar a preservação dos bens culturais e naturais da ilha, onde o turismo tem traz desafios que vão do lixo ao abastecimento de água, para além da sobrelotação.
Fuji-Kawaguchiko
No Japão, as autoridades da cidade onde fica o Monte Fuji, chamada Fuji-Kawaguchiko, passaram a limitar o número de visitantes a 4.000 por dia. Eles também impuseram uma taxa de 2 mil ienes (cerca de US$ 13) para acesso ao icônico cume.
A população local, com menos de 25 mil habitantes, reclama de sujeira, falta de educação, riscos de atropelamento e estacionamento ilegal.
Turista na frente da loja de conveniência com o monte Fuji ao fundo
Reuters
Barcelona vai limitar alugueis de curta temporada

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